segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

De quem é o ovo?

Os meus avôs maternos tiveram oito filhos (Deoclésia, Helena, Juvenal, Augusto, Bento, José, João e a minha mãe Ruth, a caçula), trinta e quatro netos, setenta bisnetos e trinta e cinco tataranetos.

Minha mãe praticamente morou a vida inteira na mesma casa onde nasceu. Saiu dali por uns doze anos, quando se casou, até que a minha avó adoeceu e, logo em seguida, o meu avô teve complicações de saúde. Como ela sempre foi muito prestativa, tomou a iniciativa de se mudar para essa casa, que sempre foi a sede principal do sítio, a fim de poder deles cuidar melhor.

O meu pai foi o seu primeiro e único namorado, pois naquele tempo os pais ainda influenciavam muito na escolha do futuro marido e o meu avô, sempre muito exigente, não deixava que ela namorasse qualquer um.
Demorou bastante tempo para que ela tivesse a coragem de anunciar a sua intenção de namoro. A princípio, o meu avô ficou um pouco ciumento, devido ao fato de ela ser a sua filhinha mais nova, já com mais ou menos 18 anos, mas acabou aprovando o relacionamento.

Durante quase quarenta anos, minha querida mãe cuidou de doentes: primeiramente, do meu avô, logo em seguida, da minha avó, do meu avô paterno, da minha tia Fininha e, por fim, do meu pai. Este, por conta de um AVC, ficou durante quinze anos na cama, pois perdeu totalmente os movimentos das pernas e de um braço. Também não falava, somente balbuciava alguns sons, mas ela entendia tudo o que ele queria comunicar.

Em nenhum momento reclama dessa sua vocação, muito pelo contrário, sempre agradeceu a Deus por tudo o que havia dado a ela. Inclusive comentava que preferia o meu pai sempre perto dela, mesmo que fosse naquela condição. Também fazia questão de ressaltar que tudo aquilo ainda era pouco em comparação aos muitos anos que recebeu, com tanto carinho, o seu cafezinho na cama todos os dias e uma rosa bem bonita em datas especiais.

A casa onde ela nasceu é até hoje o ponto de encontro de toda a família. À medida que os meus primos foram perdendo seus pais, pois quatro dos meus tios infelizmente não estão mais conosco, minha mãe foi sendo assumida também como a segunda mãe de vários deles. Sempre fomos muito próximos e essa união deve-se muito a Dona Ruth. Todas as festas natalinas nós fazemos questão de comemorar juntos. Não me recordo de ter passado um Natal longe de minha mãe.

Ela sabe os gostos de cada um e procura agradar a todos. Quando chega o Álvaro, filho do meu primo João, ela corre para preparar um chá preto, sem açúcar. Para a minha filha Rafaela, bolinho de chuva. A Lana é vegetariana e não come nenhum tipo de carne, mas nem se preocupa, pois sabe que sempre terá alguma coisa gostosinha para ela comer. Eu gosto do feijão com arroz e frango frito, assim como a minha filha Isabela. A bisneta Maria Lívia, ainda um bebê, já tem as suas preferências e também é servida como todos nós.

Enquanto mantínhamos um time de futebol só da família e jogávamos todos os domingos, pela manhã, os meus primos Laudenir, Zé Bueno, Pedrinho, João, Jorge, dentre outros, não iam para o jogo sem antes passar na cozinha da D. Ruth para tomar o seu delicioso café. Era como se fosse um ritual. Sem isso, o time não entrava em campo.

Os nossos aniversários são até hoje, em sua maioria, comemorados em sua casa. O bolo é colocado na mesa retangular, um dos vários móveis que são carinhosamente preservados desde o tempo em que meu avô casou-se com a minha avó. Canta-se, inicialmente a canção: “O aniversariante será abençoado, porque o Senhor vai derramar o seu amor...”, depois o “parabéns a você...”.

Praticamente todos os domingos, salvo compromissos inadiáveis, nós almoçamos juntos. Estão sempre presentes minha esposa Lana, as minhas filhas, Rafaela e Isabela, minha irmã Kika, meu cunhado Marcos, minha sobrinha Natália e minha sobrinha neta Maria Lívia. A alegria fica plena quando meu neto Lorenzo, as minhas filhas Fernanda e Juliana e os genros Angel, Paulo e Eric podem estar junto conosco. A família cresceu e praticamente não cabem todos à mesma mesa ao mesmo tempo.

Além disso, cuida de uma matilha de cachorros, em torno de meia dúzia, sem contar os gatos que por lá aparecem e vão ficando.

Como a sua casa fica na beira da estrada, aparecem andarilhos pedindo comida e ela sempre tem algo a oferecer. Alguns até ficam amiguinhos da família, como é o caso do “Papai & Mamãe” (mas isso fica para outra história).

O dia em que eu, com 19 anos, saí de casa para trabalhar foi muito marcante. No domingo à noite, ela ficou acordada até bem mais tarde que o normal, passou as minhas roupas e colocou-as com muito cuidado em uma mala de viagem, pois a partir de então eu ficaria a semana toda fora, uma vez que eu iria trabalhar na cidade de São Bernardo do Campo e estudava Administração de Empresas na faculdade em Mogi. No dia seguinte, levantou bem cedinho e, com todo o carinho desse mundo, sabendo do meu gosto, fez o delicioso virado de feijão com ovo para que eu tomasse com café, antes de sair. Embora soubesse que um dia eu teria que ir para o mundo e seguir uma profissão, aquele momento trazia um sentimento de separação, pois sempre fui obediente e muito apegado aos meus pais. Eu peguei a mala, coloquei-a no fusquinha e voltei para me despedir. Minha mãe estava chorando no cantinho da sala, abraçou-me bem forte e disse:

-Filho, que Deus o acompanhe e te dê muita força para enfrentar os desafios do mundo e discernimento para as coisas corretas na sua profissão. Trate todos com igualdade, como sempre fez, e tenha a certeza de que todos irão te respeitar...

Levei em meu coração e em minha mente esses ensinamentos. Choramos juntos e nos abraçados por um instante. Ela enxugou as lágrimas, abriu a porteira e ficou lá acenando para mim e repetindo:

-Vai com Deus, meu filho... Vai com Deus...

Fui me afastando e olhando pelo retrovisor a sua fisionomia de mãe preocupada. Fiz, nesse momento, uma promessa: iria por toda a vida lembrar-me de suas recomendações e seguir à risca os seus conselhos.

Com o meu primeiro salário comprei para ela um lindo faqueiro Tramontina, com 76 peças, cujo estojo de tampa basculável por meio de dobradiças, suportes especiais para fixação dos talheres e com encaixes especiais, guarda cuidadosamente até hoje. Os talheres foram colocados em uso.

Meu cunhado, Marcos, sempre comenta que sua sogra tem uma predileção exagerada quando se trata de agradar os meus gostos, o que não é bem verdade, uma vez que ela demonstra muito prazer em satisfazer a todos. Ele sempre conta uma história como exemplificação. Esta é a seguinte: houve uma época em que todos os dias eu e o Marcos voltávamos do serviço no mesmo horário e jantávamos juntos.

Sempre que chegávamos, já estava tudo arrumadinho para o jantar, só faltando preparar a mistura para que não esfriasse até sentarmos à mesa. Em um dia desses, ela foi à dispensa, pegou dois ovos de galinha caipira, comida que nós dois gostamos muito, colocou-os em um prato e veio para a cozinha prepará-los. Quando chegou à porta, desequilibrou e um dos ovos caiu e se espatifou no chão.

Ela, prontamente, falou:

- Puxa vida, Marcos, caiu o seu ovo!

Ele reclamou de imediato:

- Sogra, como a senhora sabe que aquele ovo que caiu foi o meu?

Ela, meio sem graça, comentou:

-ERA SEU SIM, O DO JOÃO FICOU AQUI NO PRATO.

Será que ele tem razão, quando até hoje, reclama disso?

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Meus tempos de Ginásio

Naquele dia, minha mãe acordou ainda mais cedo que o de costume, pois eu iria vestir pela primeira vez o uniforme do Ginásio Estadual Roberto Feijó e ela tinha que dar a última passadinha com o ferro de brasas, que demorava um pouco para acender. O uniforme era diferente de tudo o que eu já havia vestido até então: calça cáqui, camisa branca, gravata azul-marinho, meias brancas e sapatos pretos. No bolso da camisa estava bordada a logomarca da escola, GRF, em azul, e em baixo do G, que era bem maior, bordava-se um traço para a primeira série, dois para a segunda e assim por diante. Eu tinha 11 anos e acabava de sair do Grupo Escolar Getúlio Vargas.

Naquela época, o ensino era bem diferente. Começávamos na escola mista rural, onde todos estudavam em uma mesma sala de aula, do primeiro até o terceiro ano, com uma só professora. Depois, seguíamos para o Grupo Escolar para concluir o quarto ano, momento em que recebíamos um diploma de formatura do primário. Aprendíamos a tabuada de cor e salteado, todas as quatro operações matemáticas básicas (soma, subtração, divisão e multiplicação) e resolvíamos problemas básicos de aritmética. Tínhamos algumas noções de história do Brasil. Depois disso, íamos para o Ginásio, onde completávamos os estudos da primeira série até a quarta. Após diplomados do Ginásio, dever-se-ia escolher entre o Clássico ou o Científico: mais três anos antes do curso superior.

Para entrar no Ginásio, tínhamos que nos preparar por um ano e enfrentar o exame de admissão. Sentíamo-nos como vestibulandos: experimentei a mesma tensão mais tarde ao fazer o vestibular, talvez até um pouco menos, pois, com o exame do Ginásio, era a primeira vez que íamos enfrentar um mundo “mais adulto”.

Na escola estadual, o ensino diferenciava-se por ser bem mais puxado que o das particulares, estas freqüentadas por aqueles alunos que não conseguiam acompanhar o ritmo da pública. O ensino público tinha muita qualidade. Todos queriam estudar nessas escolas, as melhores. Se alguém não tirasse a média de 7, repetia de ano e se fosse reprovado por três anos, era jubilado, expulso. Somente as escolas particulares aceitavam alguém nessa condição.

Em meu primeiro dia de aula no Ginásio, estava muito feliz, porém muito assustado, pois vinha da roça, onde não havia nem luz elétrica, sendo a nossa única comunicação com as notícias do mundo o famoso radinho de pilha “Philips”. Eu me esforçava muito, pois não havia outra maneira de eu me sobressair, já que, além de muito caipira, eu era o menorzinho de toda a turma, aquele que tinha que sentar na primeira carteira, sendo assim o primeiro nas famosas chamadas orais. Isso sem contar a timidez natural de um garoto dessa idade, enfrentando o que era para mim o desafio da “cidade grande”.

A classe era composta de 53 alunos, somente meninos, pois ainda não existiam as classes mistas. As meninas ficavam em uma sala ao lado da nossa.

Outra diferença muito marcante era a quantidade de professores diferentes, uma vez que eu tinha tido apenas quatro professoras na vida. A partir de então, teria um para cada disciplina, tantos que eu até confundia no início, tendo demorado um pouco para familiarizar-me com a planilha dos horários de aulas. Além disso, havia todo o tratamento formal. Aluno não falava alto com professores e nem retrucava qualquer ordem. Ninguém chamava professor de tia ou tio. Referíamo-nos a eles como senhor e senhora. Respeito total. Ninguém se retirava da sala de aula sem pedir e só saía se a autorização fosse concedida. Quando o professor entrava na sala, silenciava-se todo e qualquer barulho, reinando o silêncio e o respeito, símbolos de autoridade. Era como se eles fossem os nossos segundos pais em relação ao poder que tinham sobre nós.

Todos os dias, antes de entrarmos para a sala de aula, perfilávamos em frente à bandeira brasileira, cada série em sua fila. Só entrávamos para a sala de aula, continuando em fila, depois de cantarmos o Hino Nacional.

Havia o Canto Orfeônico, onde se aprendia a ler as notas musicais, a compreender as figuras no pentagrama em função de sua duração (colcheias, semi colcheias, fusas, etc.), a escrever as claves de Sol, a distinguir sustenido de bemol. Além disso, era nesta aula que treinávamos o hino, durante todo o ano, estudando minuciosamente cada estrofe e o sentido de cada palavra.

Aos poucos, fui entendendo aquela nova dinâmica. Tive o privilégio de ter vários mestres, de quem até hoje me recordo com muito carinho, cujos ensinamentos, tanto de conhecimento quanto de cidadania, ajudaram e muito na minha formação e de tantos outros amigos. Era um time de profissionais da melhor qualidade, apresentado o Sr. Alfredo Daher, nosso diretor, muito exigente e disciplinador; o Sr. Lineu, de Química; o Sr. Cláudio, de Matemática; o Sr. Olímpio, de Geografia; o Sr. Valdomiro, de História; a D. Marli, de Canto Orfeônico; o Sr. Quinho, de Artes Manuais; a D. Rosa, de Português e o Sr. Paulo de Tarso, de Educação Física, além do Sr. Josias e D. América, queridos secretários, e D. Iracema, a servente.

De todas as matérias, havia uma que me encantava: o Francês. Eu achei demais aquela forma de pronunciar as palavras fazendo bico e arranhando a garganta. O nosso professor, um educador fantástico chamado Paulo Afonso Daher, filho do diretor, tinha uma didática muito peculiar. Ele chegava à porta da classe e enquanto não estivesse tudo no mais absoluto silêncio, não adentrava. Moço muito alto, forte, com um bigode preto enorme. Raramente sorria e sua fisionomia fechada nos fazia ainda mais atentos à matéria.

Quando todos se levantavam para recebê-lo, ele falava bem alto:

- Bonjour.

Todos respondiam em um tom uníssono:

- Bonjour professeur.

Entrava na sala e iniciava a chamada. Chamava cada aluno pelo número e este deveria ficar em pé, respondendo em francês com uma frase. A cada semana essas sentenças eram trocadas, passavam para outro aluno, até que todos soubessem de cor todas as frases da classe.

Ele falava:

- Numéro un!

O aluno correspondente ao número um, respondia:

- Les deux hits qui colle jusqu'à. (Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura)

Ele falava:

- Numéro deux!

O número dois respondia:

-Mieux vaut un oiseau dans la main vaut mieux que deux tu l’auras. (Mais vale um pássaro na mão do que dois voando).

Ele falava:

- Numéro trois!

O número três respondia:

-La voix du peuple est la voix de Dieu. (A voz do povo é a voz de Deus)

Ao final do terceiro ano tivemos que recitar a fábula “Le Corbeau et le Renard” (O Corvo e a Raposa), de Jean de La Fontaine. Não errei nenhuma frase. Tirei nota máxima. Decorei com tanta dedicação que ainda recito de cor. De tanto eu repetir essa história em casa para as minhas filhas, a Rafaela aprendeu também e sempre repete comigo, com seu sotaque “francês mogiano”:


Maître Corbeau, sur un arbre perché,
(O senhor corvo numa árvore empoleirado)
Tenait en son bec un fromage.
(Segurava no seu bico um queijo)
Maître Renard, par l'odeur alléché,
(A senhora raposa, pelo odor atraída)
Lui tint à peu près ce langage:
(Dirigiu-se-lhe mais ou menos com estas palavras:)
"Hé ! bonjour, Monsieur du Corbeau.
(Olá! Bom-dia, senhor corvo)
Que vous êtes joli ! que vous me semblez beau !
(Como sois bonito!Como me pareces belo!)
Sans mentir, si votre ramage
(Sem mentir, se o vosso gorjeio)
Se rapporte à votre plumage,
(For semelhante à vossa plumagem,)
Vous êtes le Phénix des hôtes de ces bois.
(" Vós sois a fénix dos habitantes destes bosques.)
A ces mots le Corbeau ne se sent pas de joie
(Com estas palavras o corvo não cabe em si de contente;)
Et pour montrer sa belle voix,
(E para mostrar a sua bela voz,)
Il ouvre un large bec, laisse tomber sa proie.
(Ele abre o grande bico e deixa cair a sua presa.)
Le Renard s'en saisit, et dit : "Mon bon Monsieur,
(A raposa apodera-se dela e diz: "Meu bom senhor,)
Apprenez que tout flatteur
(Aprendei que todo o bajulador)
Vit aux dépens de celui qui l'écoute:
(Vive às custas daquele que o escuta:)
Cette leçon vaut bien un fromage, sans doute.
(" Esta lição vale bem um queijo, sem dúvida.")
Le Corbeau, honteux et confus,
(O corvo, envergonhado e confuso,)
Jura, mais un peu tard, qu'on ne l'y prendrait plus.
(Jurou, mas um pouco tarde, que não o apanhariam mais)

Bons tempos, aqueles! Talvez muito mais difíceis que os dias de hoje, em vários aspectos, porém muito mais charmosos. Havia menos violência, mais solidariedade e, principalmente, muito mais respeito aos educadores. Saudades!

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A caçadora de veado

A minha avó materna era uma mulher muito batalhadora e corajosa. Franzina fisicamente, mas uma fortaleza nas atitudes. Era pequenininha, sempre usava vestidos de chita bem compridos, seus cabelos eram branquinhos, cuidadosamente trançados e presos por grampos em um birote no alto da cabeça, com dois pentinhos tortinhos de cada lado. Dizia que nunca os havia cortado, porém eram bem fininhos e nem tão longos.

Pelo menos três vezes por semana, à tardezinha, perto do pôr do sol, ia até à beira do ribeirão para pescar a mistura da janta. Fisgava a quantidade suficiente de peixes (um para cada um de nós) e só então retornava para casa para fazer o jantar.

Chegou a se acidentar com o anzol quando, após um movimento mais brusco, o mesmo transpassou a sua pálpebra. Foi necessário que o meu avô cortasse um pedacinho da pele com o seu canivete para retirá-lo. O mais incrível é que ela nunca reclamava de nada, era como se não sentisse a sensação de dor.

Ela gostava tanto do ribeirão que, quando estava grávida de 9 meses do meu tio Bento, resolveu ir mariscar camarão com peneira. Para isso, era necessário entrar na água, que ficava mais ou menos na sua cintura. Começou a sentir as dores, voltou rapidamente para casa e nem deu tempo de preparar o delicioso bolinho de camarão. O meu tio veio ao mundo logo depois, já que naquele tempo as crianças nasciam em casa mesmo. Foi só o tempo da parteira chegar.

Uma de suas muitas tarefas era produzir farinha de mandioca.
A tecnologia para fabricação da farinha era simples, mas exigia alguns cuidados no seu desenvolvimento. As raízes da mandioca eram colhidas pelo meu avô e trazidas em jacás. Eram bem lavadas em água corrente para eliminar as impurezas, pois a higiene e os cuidados durante todo o processo de fabricação eram fatores fundamentais para garantir um produto de qualidade. O passo seguinte era fazer o descascamento das raízes utilizando faquinhas de aço inoxidável seguida de uma segunda lavagem para a retirada da casca ou impurezas ainda remanescentes.

Em seguida, era feita a ralação em uma roda de madeira que possuía duas manivelas e era coberta em sua superfície por uma chapa toda furadinha feito serrilhas, chamada de cevadeira. Tinha que ser operada por duas
pessoas na manivela enquanto uma ia alimentando com as raízes. Era nisso que a gente podia ajudar.

Assim que eram raladas, caíam em uma gamela de madeira e daí o conteúdo formado era colocado em um tipiti ou cesto feito de bambu, e prensado no fuso com auxílio de uma tripeça de madeira muito pesada.

A água resultante da prensagem da massa ralada, chamada "manipueira", era muito tóxica e poluente, por isso não se podia jogar no riacho, pois se tinha o risco de matar os peixes.

Deixava a massa prensada até o outro dia, quando levava para a torração
em um tacho de cobre, por um período aproximado de 20 minutos, mexendo bastante e uniformemente a massa com o auxílio de um rodo de madeira, de cabo longo e liso, até a secagem final da farinha.

Lembro-me de um fato muito interessante relacionado à minha avó. Naqueles tempos, os amigos de meu avô reuniam-se para caçada ao veado.
Chegavam todos bem cedo, e minha avó preparava o desjejum, normalmente um café reforçado com farinha de milho e biscoito. Traziam os seus cachorros perdigueiros, juntando-os aos da nossa casa, e saíam com a matilha, que geralmente era formada por animais de olfato muito apurado e de grande velocidade. Antigamente,todos caçavam armados, ou seja, a intenção era matar a caça, pois ainda não havia a consciência da preservação dos animais silvestres.

Em uma dessas caçadas, chegaram todos muito animados, prometendo que seria aquele um dia muito promissor para a caçada. Colocaram os cachorros no mato, e estes saíram em disparada, pulando valas, córregos, pontes caídas, mata-burros, cercas de arames.

Enquanto isso, a minha avó ficou preparando o almoço. Assim, no momento em que todos chegassem famintos, tudo já estaria bem arrumado e colocado à mesa.

De repente, ela ouviu um barulho no quintal. Saiu para ver o que estava acontecendo e notou a presença de um veadinho todo assustado, sem saber para onde correr.

Rapidamente, abriu uma das portas da casa. O animal entrou na sala e rumou para o quarto do meu tio Augusto. Neste momento, ela fechou a porta do quarto e continuou os preparativos até a chegada dos caçadores.

Depois de algum tempo, chegaram todos muito cansados e cabisbaixos, pois a caçada naquele dia não tinha sido nada promissora. A minha avó foi prontamente falando com eles em tom de gozação:

-Seus caçadores de meia tigela, cadê a caça que todos saíram prometendo trazer?

Meu avô foi logo justificando:

-Não sei o que aconteceu, o veado foi muito rápido e logrou a nossa cachorrada. Não foi dessa vez...

A minha avó, ainda em tom de gozação, falou:

-Eu aqui em casa, cozinhando para vocês, sou mais caçadora que todos juntos.

O meu avô, sem entender nada, disse:

- Pára com isso e vamos servir logo essa comida, pois estamos todos famintos.

A minha avó, rindo, disse:

-Antes dê uma oiada no buraco da fechadura do quarto do “Gusto” que oceis vão entender.

Foi quando, um por um, boquiabertos, olharam, e rindo comentaram:

-É gente, dessa vez “a porca torceu o rabo”, a Dona Lina foi a grande caçadora da tarde!

Esse veadinho ficou no sítio por um bom tempo, em um cercadinho próximo ao chiqueiro dos porcos, até um dia em que aproveitou uma brecha na cerca e sumiu na mata para nunca mais voltar.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Coisas de Criança

A nossa casa tinha dois quartos, sendo que o dos meus pais, bem maior, era dividido em dois espaços distintos. Logo na entrada da porta, ficava a cama do casal, com seu colchão de capim e uma colcha de retalhos, feita pela minha mãe. Um criado mudo de madeira marrom e uma camiseira compunham o ambiente. Mais à frente, ficava o meu berço, de madeira.

Este berço era itinerante e passava de casa em casa para uso dos bebês que iam nascendo na família. Primeiramente, fui eu quem o utilizou, depois veio o Antonio Luiz, a Maria Inês, a minha irmã Kika, o José Bueno, a Iolanda, o Fernando, o Alfredo, a Cleide e a mais nova dos primos, a Márcia. Depois de algum tempo, ele foi pintado de azul e, não sei por que motivo, teve seus pés cortados, ficando o berço um pouco mais baixo e sem o dispositivo de balanço. Mais tarde, serviu também para a minha sobrinha Natália e até as minhas filhas, Fernanda e Juliana, tiveram o gostinho de dormir nele. Soube que ele ainda existe e está na casa do tio Bento.

Quando a minha irmã nasceu, eu tinha três anos e adorava ficar tomando conta do bebê enquanto ele estava naquele berço. Nesses momentos, normalmente a minha mãe estava no tanque cuidando das roupas, colocando-as no quarador ou estendendo-as no varal. De vez em quando, ela olhava pela janelinha do quarto e perguntava:

- Filho, está tudo bem com o bebê?

Eu respondia, com cuidado, para minha irmã não se assustar:

- Tá sim, mamãe.

Assim que caía sua chupeta da boca, ela começava a querer chorar e eu a repunha imediatamente a fim do bebê ficar bem quietinho. Queria deixá-la sempre entretida. Numa dessas tardes em que eu estava à beira do berço tomando conta da minha irmã, eu tinha comigo uma tigela de amendoim. Enquanto ia comendo os amendoins, balançava o berço e, de vez em quando, colocava em sua boca a chupeta. Mas, tadinha, ela só tinha aquela chupeta sem gosto para pôr na boca. Foi esse pensamento que me fez ter uma idéia.

A minha mãe, terminando a sua tarefa, veio ao quarto e perguntou:

- Ela ficou bem?

Eu, prontamente, respondi:

-Ficou, sim, mamãe! Até dei um amendoim para ela comer.

Minha mãe, que sempre foi muito calma, assustada quase gritou:

- Seu moleque, ela é um bebezinho, como foi que você deu um amendoim para ela?!

Eu, com aquela cara de sapeca, fui logo me defendendo:

-Mas mãe, ela ficou olhando para mim, batendo as mãozinhas e as perninhas e eu achei que ia ficar com vontade, dei para ela e ela gostou, até ficou bem quietinha. Se eu não desse, ela podia ficar desconfiada, né?

A minha mãe ficou o resto do dia e quase a noite toda rezando para que a Nossa Senhora das Graças, sua santa de devoção, protegesse o bebê, pedindo para que nada de mal pudesse acontecer à minha irmãzinha.

No outro dia, quando ela foi trocar a sua fralda, que na época era de pano, estava lá o grãozinho de amendoim inteirinho!

Que alívio!

Saco de Risadas

Todo o mês de maio íamos de romaria à Aparecida do Norte visitar a imagem de Nossa Senhora Aparecida. Em meus primeiros anos de vida, chegamos a ir algumas vezes de caminhão. Em sua carroceria, algumas tábuas eram colocadas, formando bancos que eram cobertos de lona. Na viagem toda, cantos religiosos eram entoados: "Dai-nos a bênção ó mãe querida,
Nossa Senhora Aparecida. Sob esse manto do azul do céu..." Também o terço era rezado. Formavam-se grupos de aproximadamente 25 pessoas, reunindo 3 ou 4 famílias. A maioria delas ia para agradecer alguma graça recebida ou então fazer algum novo pedido.

Havia algumas paradas certas para a nossa alimentação. Cada um levava algum tipo de comida que era consumida comunitariamente. Não podia faltar a farofa, o frango frito e o arroz branco. A bebida era normalmente Tubaína, sem gelo, pois ainda não tínhamos geladeira e nem isopor.

Era uma grande aventura esta viagem, sempre aguardada com muita ansiedade. Saíamos de Guararema bem cedinho e seguíamos em direção à Jacareí, pela estrada velha, depois pela via Dutra, passando por São José dos Campos, Caçapava, Taubaté, Pindamonhangaba e, finalmente, chegando à Aparecida do Norte.
A distância de 120 km, aproximadamente, era cumprida em mais ou menos oito horas, pois naquele tempo a Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, conhecida como BR-2, estava sendo construída e em alguns trechos havia somente uma pista.

Chegando lá, a primeira missão era ir à Basílica antiga, mais conhecida como igreja velha, pois a obra do Santuário Nacional ainda estava começando, uma vez que o seu início deu-se por volta de 1955 e em meados dos anos 60 ainda estava em fase inicial de construção. Sua inauguração ocorreu somente nos anos 80.

Cumprida a missão religiosa, que era assistir à missa, visitar a imagem, acender velas, subir ao Cruzeiro e agradecer pelas graças recebidas na casa dos milagres, o resto era só diversão, principalmente a parte de ir às compras nas barraquinhas e lojas que ficavam nas vizinhanças da igreja. A foto para registrar esse momento único, tirada com fotógrafo lambe-lambe, na frente da igreja, não podia faltar.

Na volta, duas paradas eram inevitáveis: o Posto da Gruta, para tomar água da Nossa Senhora de Lourdes, e a cidade de Jacareí, com seus deliciosos biscoitos.
Nos anos 60, já não íamos mais de romarias de caminhão, mas, sim, de perua Kombi, do tio José Moreira.

Houve uma vez em especial que juntamos a nossa família com a do Vicente Nogueira e seguimos para a nossa peregrinação. Estavam presentes o Seu Vicente, a dona Helena e seus filhos Jorge e Eduardo, o Tio Bento, a tia Rosalina e seu filho Alfredo. Da nossa casa, o meu pai, minha mãe e minha irmã Kika e o meu tio Zé, dirigindo a sua Kombi azul.

Saímos de casa por volta das 7 horas, passamos pela Freguesia da Escada para completar a lotação e rumamos para o Santuário. Chegamos lá por volta das 9h30 e assistimos à missa das 10 horas. Fizemos a visita à imagem e, na saída da igreja, minha mãe resolveu que eu e minha irmã tiraríamos uma foto.

Eu estava vestido com uma calça curta marrom, camisa branca, sapatos marrons, meias brancas e suspensório, pois, naquela época, era muito comum os meninos usarem este adereço. A minha irmã estava com um vestidinho florido e sandálias claras. No momento de pousar para a foto, ainda bem pequenininha, ela ficou assustada e não queria ficar quieta. A minha mãe teve que comprar, em uma loja perto da praça, uma bolsinha de palha, que mais parecia uma cestinha, para entretê-la. Só assim ela ficou paradinha. Tiramos uma foto linda! Eu de mão na cintura e ela com a bolsinha na mão, sentada em uma cadeira de madeira. Até hoje as mãozinhas na cintura rendem várias gozações dos meus primos.

Descemos a ladeira em frente à Basílica velha, onde não faltavam barraquinhas e lojinhas com souvenires religiosos de todos os tipos: imagens de santos, carrinhos de brinquedos, bonecas, armas, instrumentos musicais, rádios, terços, velocípedes, velas e tantos outros itens. Tudo o que se encontrava em uma loja ou barraca tinha em quase todas as outras.

Eu estava numa fase de menininho peralta e meu pai tinha que ficar de olho para que eu não aprontasse nenhuma arte. Nas barracas, havia uns Sacos de Risadas pendurados. Quando descobri como funcionavam, comecei a sair correndo na frente para ir apertando os sacos, correndo depois para fugir. Quanto mais o meu pai corria atrás de mim, mais rápido eu ia, apertando e correndo. Foram muitas e muitas risadas. Até que fui alcançado e tomei aquele beliscão.

Na viagem de volta, ainda aprontei mais uma. Porém, dessa vez ninguém notou. Eu estava sentado no banco do meio da Kombi, ao lado da porta, cujo trinco soltei com o veículo em movimento, não conseguindo mais fechá-lo. Fiquei segurando até a próxima parada que foi no Posto da Gruta, já em São José dos Campos. A minha mãozinha já estava doendo muito e ficando roxa e eu rezando para chegar logo.
Passei muito medo, mas o xingo certamente seria muito maior. Nunca ninguém soube dessa peraltice.

Hoje, fico imaginando o risco pelo qual passei. Criança não tem mesmo noção dos perigos!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A primeira tv a gente não esquece

Todas as noites, minha mãe preparava o jantar enquanto esquentava bem a água em um caldeirão no fogão à lenha. Colocava o líquido já quente na bacia e ia temperando com a água fria retirada do poço até a mistura ficar na temperatura ideal para um banho bem gostoso. Tirava a minha roupa, que normalmente estava bem sujinha, pois eu brincava pelo terreiro o dia todo. Nessa idade, o que eu mais gostava de brincar era de colocar a girafinha, como se fosse um cavalinho, num curral feito de sabugo de milho, ficando eu sentado no chão, debaixo de uma mexeriqueira que ficava próxima do quartinho das ferramentas.

Depois de trocado, com as roupas limpinhas, eu subia a escada que ia dar no armazém para aguardar o meu pai terminar de contar a féria, que era o termo utilizado para o dinheiro arrecadado durante o dia de trabalho. Ele retirava as notas de dentro da gaveta, situada embaixo do balcão, onde já estavam devidamente separadas por valor. As cédulas eram de 20 cruzeiros (Duque de Caxias), 50 cruzeiros (Princesa Izabel), 100 cruzeiros (D. Pedro II), 200 cruzeiros (D. Pedro I), 500 cruzeiros (D. João VI) e 1.000 cruzeiros (Pedro Álvares Cabral). Eu ia ajudando a colocar na ordem e, como não entendia muito bem o valor, considerava as cores. Depois de juntar todas as notas, o meu pai as contava e anotava o valor em uma caderneta, sendo que cada linha representava um dia da semana. No final da página, era somado o total arrecadado de cada mês.

Para o término do expediente, existia todo um ritual. Primeiramente, fechavam-se as portas da frente, colocando umas trancas de madeira encaixadas em um suporte de ferro, depois as tramelas, situadas nos batentes superiores. Os suportes eram amarrados numa cordinha para que não se desprendessem das trancas. Depois de fechadas, alguns engradados de bebidas eram ali encostados, servindo de reforço em caso de alguém forçar as portas do lado de fora. A mesma coisa se fazia com a janelinha da frente, com as dos fundos e com a porta lateral. Apagávamos o lampião e, com uma lamparina acesa, descíamos os degraus, os quais davam para a sala de casa. Já podíamos sentir o cheirinho delicioso da comida à mesa.

Em uma noite dessas, enquanto jantávamos, ouvindo as músicas de “Alvarenga e Ranchinho” e “Tonico e Tinoco”, no rádio, o meu pai ia explicando que já existiam aparelhos de televisão, onde, além do som, podíamos também ver imagens. Porém, como na região ainda não havia energia elétrica, não era possível ter um equipamento desses por ali. Pegando uma caixa de fósforos, ele foi demonstrando, na mesa, como era esta novidade, montando um lay out com palitos.

Eu fiquei muito interessado e ele prometeu que no dia seguinte iríamos conhecer pessoalmente aquela maravilha. Como em todos os dias, adormeci em seu colo, mas desta vez foi um pouco mais difícil que normalmente, pois eu estava muito curioso e ansioso para que chegasse logo o outro dia. Acordei cedinho e fui logo cobrando a nossa viagem para conhecer um aparelho de televisão.

Como o meu pai sempre cumpria o prometido, pediu à minha mãe que colocasse em mim a minha melhor roupa. Pegamos o ônibus da Santa Maria Viação e rumamos para Mogi das Cruzes. Eu sempre dava uma cochiladinha durante a viagem, mas naquele dia foi impossível, tamanha era a expectativa. Descemos na rodoviária, entramos pela rua Dr. Deodato Wertheimer, passamos pela igreja do Rosário, pela praça da fonte luminosa e fomos observando algumas lojas, Ducal, Meyer Magazine, até chegarmos a Lojas Ultralar.

O meu pai chamou um vendedor, que ele já conhecia, e solicitou que nos mostrasse o aparelho de tv. Estavam todos colocados em uma prateleira e desligados. O vendedor prontificou-se a ligar um deles. Era uma televisão da marca Telefunken que, nessa época, ainda apresentava imagens em preto e branco. Ligou uma caixinha, que mais tarde eu aprendi que era um estabilizador de voltagem, mexeu em alguns botões, esperou alguns instantes (até que o aparelho aquecesse), regulou a imagem que aparecia entre algumas listras horizontais, depois listras verticais e, em meio a uns chuviscos, foi aparecendo as primeiras cenas, como num passe de mágica. Era um desenho animado do pica-pau, em um episódio clássico em que ele está passeando com o seu “super carro”, quando, por faltar gasolina em seu automóvel, ele resolve roubar do carro do policial Leôncio. Fiquei deslumbrado com aquilo, pois estava acostumado a somente ouvir o som e ali estavam som e imagem. Foi demais!

O meu pai, muito feliz, continuava explicando:

- Meu filho, para sintonizar o aparelho, há a necessidade de uma antena que deve ficar em um lugar bem alto.

Agradeceu a atenção que o vendedor havia nos dado e saímos pela rua em direção à Praça Osvaldo Cruz. Pedi ao meu pai que me mostrasse alguma antena e ele, prontamente, pediu para que eu olhasse na sobreloja. Voltei meus olhos para o alto e vi algo bem diferente, que nunca havia visto antes. Tive certeza que era uma antena!

Antes de irmos embora, passamos na Padaria Americana, comemos um sanduíche de bauru com Guaraná, enquanto esperávamos o horário do ônibus de volta. Lembro-me perfeitamente que na loja de discos Livroeton tocava a música “Dominique”, da cantora Giane (“Dominique, nique, nique, sempre alegre, esperando alguém que possa amar. O seu príncipe encantado, seu eterno namorado...”). Até hoje, quando ouço essa música, recordo-me daquele dia.

Chegando a nossa casa, fui logo descrevendo para a minha mãe tudo o que havia conhecido naquele dia. Mas algo, com certeza, eu caracterizei de forma errada: quando eu olhei para cima a fim de ver a antena de televisão, eu não visualizei o teto do edifício, mas sim sua sala mais alta, que era um salão de cabeleireiro. Pensei que antenas eram uns aparelhos de secar cabelos que estavam próximos à janela daquele salão. Por isso, por algum tempo, eu achei que a antena de televisão fosse parecida com um enorme coador de café ou com uma biruta de aeroporto, em vez de semelhante a uma espinha de peixe. Coisas de criança!

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Minha Doce Magrelinha

Os meus pais tiveram muitos compadres. Até perderam a conta de quantas crianças eles batizaram, isso sem considerar os inúmeros casamentos dos quais eles foram padrinhos. Naquele tempo, faziam questão de chamar os pais, tanto dos batizandos, quanto dos noivos, de compadres. Era como mais um membro da família: os afilhados os chamavam de padrinhos e tomavam sua bênção, tanto na hora da chegada, quanto na partida. Os mais velhos tiravam o chapéu e beijavam suas mãos. O meu pai foi uma pessoa que procurava sempre atender a todos, e como retribuição, ofereciam-lhe os filhos como afilhados.

Dos muitos compadres, um chamava muito a minha atenção: o Zé do Quiabo. Dos seus cinco filhos, três eram afilhados dos meus pais. Era uma pessoa de muito boa conversa, bem esclarecido para os padrões da época. Estava sempre lá em casa, já que morava num sítio vizinho ao nosso. Plantava várias verduras e legumes, mas se destacava mesmo no cultivo do quiabo, por isso o seu apelido. Até hoje não sei o seu nome verdadeiro. Os seus filhos viviam conosco e nós também freqüentávamos muito a casa deles.

Sua casa era amarela, bem simples, construída perto de um lago. Além do fogão à lenha, que ficava do lado de fora, tinha também um forno para assar pão , uma leitoa ou uma costela bovina, em ocasiões especiais. O compadre Zé do Quiabo era um grande apreciador desses assados.

Na parede de sua sala, havia uma bicicleta pendurada há muito tempo. Os pneus estavam murchos e os aros, os raios, os cubos e o pedivela um pouco enferrujados. Era azul com filetes brancos nos quadros. O selim de couro ficava bem instalado sobre uma plataforma de molas. A marca era Rudge, o aro 26. Um porta-malas com uma alça para prender os pacotes compunha a sua estrutura.

Eu sempre ficava apreciando aquela maravilha e um dia falei ao meu pai:

− Como já estamos meio grandinhos, seria muito bom se tivéssemos uma bicicleta.

O meu pai, prontamente justificou:

− Uma bicicleta custa caro e não estamos em condições de comprar uma nesse momento.

Como eu já havia pensado na possibilidade, fui logo dizendo:

− Aquela do compadre Zé do Quiabo seria ideal, pois é bem baixinha e vai facilitar para que a gente aprenda a andar.

A princípio, o meu pai achou a idéia meio absurda, pois já tinha ouvido comentários do compadre que aquela bicicleta foi herdada dos seus pais e não venderia e não trocaria por nenhum outro objeto. Mas de tanto eu ficar tocando no assunto, ele resolveu ir até a casa do compadre para tentar a negociação.

Num primeiro momento, o compadre hesitou um pouco, mas argumentou que não poderia negar um pedido de alguém tão especial, e, melhor ainda, ficaria como permuta de alguns mantimentos que sua família utilizaria do armazém do meu pai, uma vez que as festas de fim de ano se aproximavam e na venda tinha tudo o que precisariam.

Foi aquela alegria para todos! Era um dos presentes mais valiosos que tínhamos ganhado até então, ainda porque não era comum os recebermos, nem mesmo nos aniversários e nem tão pouco no Natal.

Concretizada a negociação, foi preciso utilizar a charrete para levá-la embora. Amarramos a bicicleta na parte traseira, junto ao encosto do banco. Colocamos uma corda no guidão, atravessando o quadro e finalizando no selim, para que não tivesse a mínima possibilidade de queda daquela preciosidade.

Chegando em nossa casa, iniciamos uma operação de restauração, começando pela retirada das rodas, desmontando os pedais, a corrente e a catraca. Tudo foi minuciosamente lavado à querosene e ela ficou brilhando, novinha em folha. Montamos com cuidado para que os ajustes ficassem perfeitos, enchemos os pneus com a devida calibragem e somente faltou uma pequena regulagem nos freios, uma vez que as sapatilhas estavam gastas em excesso. Essa tarefa ficou para a sexta-feira seguinte, quando o meu pai iria para o centro da cidade de Guararema, na ocasião das compras semanais. Na oficina do Pedro Bicicleteiro tinha todas as peças de reposição. Aguardamos ansiosamente até o dia que a peça que faltava chegou. Iniciamos, então, as primeiras pedaladas e os inúmeros tombos até aprendermos a equilibrar corretamente. Demos a ela o apelido de “Doce Magrelinha”.

Todos nós (eu, minha irmã Kika, meus primos Toninho, Inês, Zezinho, Laude, Jorge e outros que por ali apareciam) aprendemos a andar de bicicleta nela e ela era a nossa grande diversão. No quintal de casa havia uma ruazinha estreita que ia do quartinho das ferramentas, passando por dentro do pomar até a porteira de entrada na estradinha lateral. A nossa diversão era cada um ir até o final, retornar perto da saída e estacionar em baixo do pé de mexirica. Íamos anotando em uma lousinha as quantidades de voltas a que cada um tinha direito, o que servia para não se perder a seqüência.

A minha Doce Magrelinha ficou conosco por muito tempo, até que crescemos mais um pouco e ela acabou ficando pequena para o nosso peso. Foi aí que eu a barganhei, com o consentimento de meu pai, por uma outra, maior e mais nova, com meu primo Antonio Carlos que morava em Luiz Carlos e dei como pagamento, além dela, uma gaiola de passarinho.

Bons tempos aqueles!

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A nossa Tia Fininha

Logo que a minha avó Lina sofreu um derrame e ficou com a mobilidade afetada, mudamos para a casa grande, sede do sítio, de onde a minha mãe tinha saído havia alguns anos, pois, após o casamento, meus pais foram morar na casa anexa à vendinha, à beira da estrada, que liga Mogi das Cruzes a Jacareí. O meu avô Antônio já estava com uma idade bem avançada, também doente, e como a minha mãe tinha muito jeito para esse tipo de cuidado, assumiu essa missão.

A casa da venda ficou por algum tempo fechada, até recebermos a proposta de ceder a moradia para um casal: tio Antônio Rafael, irmão de minha avó, e a esposa dele, Tia Josefina.

Eles moravam num sítio muito longe dalí e não tínhamos, até então, muito contato com o casal, mas logo foram se enturmando e transformaram-se em pessoas muito importantes para todos. Nós os chamávamos carinhosamente de Tiozinho e Tia Fininha.

Não tiveram filhos. O Tiozinho, muito bonzinho, falante e risonho. A Tia Fininha era alguém diferente de todas as senhorinhas que eu conheci. Tinha um pouco mais de um metro e meio, cheinha (na realidade não era fininha), cabelos bem branquinhos e muito atenta em relação à tudo o que acontecia ao seu redor. Chegava a ser excêntrica e até meio exótica. Era extrovertida e muito avançada para os padrões da época. Tinha um palavreado bem caipira e não fazia nenhuma questão de modificá-lo, nem mesmo quando não entendíamos algum termo. Ela é quem dava as ordens em casa e tomava conta de tudo, até das finanças. O dinheiro economizado era guardado em um balainho em baixo da cama.

Os dois trabalhavam na roça como meeiros, em uma chácara na Freguesia da Escada, no outro lado do rio Paraíba, e iam todos os dias caminhando, mais ou menos 6 quilômetros, pela beira da estrada. A Tia Fininha ia lá na frente e o Tiozinho uns cem metros atrás. De vez em quando, trocavam algumas palavras, quase gritando, devido à distância que os separava.

Ela falava:
− “Anda logo, seu véio lerdo, parece uma tartaruga andano”.
Ele resmungava:
− “Tô ino, muié, to ino...”

Quando chegavam em casa, ainda faziam várias atividades, como: torrar e moer café, cuidar da horta, fazer paçoca de carne seca, preparar pamonha, malhar feijão, debulhar milho, socar arroz no pilão, tratar das galinhas, além de cozinhar e deixar pronta a comida para o próximo dia, que ia dentro de dois caldeirõezinhos enrolados em um paninho de prato, pois almoçavam no serviço. O Tiozinho cuidava da cozinha, das roupas. As demais tarefas domésticas e outros afazeres ficavam por conta dela.

Exímia tecelã, fazia trabalhos de taquara que mais pareciam verdadeiras obras de arte. Buscava a taquara póca, em uma touceira que havia no espigão da capoeira, bem acima da nossa casa. A taquara tinha que ser bem madura e retirada na lua minguante, para não carunchar. Cortava os bastões entre os nós e preparava várias varetas, milimetricamente aparadas. Tirava o seu miolo com uma faquinha bem afiada em uma pedra de amolar, colocada estrategicamente ao lado de um banquinho de madeira. Sentada nele, com as mãos bem calejadas, que até pareciam duas casquinhas de tatus, ia entrecruzando as taquarinhas, formando um maravilhoso mosaico. Saiam dali lindas peneiras, balaios, cestas, samburás, covos, cestos, jacás. Tudo era preciso, exato e muito simétrico. Impossível perceber qualquer defeito nas junções.

Seus cachorrinhos, Chulim, Minguito e Cravito, ficavam pelos arredores da casa, sempre latindo ao menor ruído ou à chegada de alguma visita. Era a tia Fininha quem tirava com um alicate os espinhos que ficavam fincados em seus focinhos quando atacavam ouriços.

Criava no quintal uma Seriema, que fôra encontrada com machucados em um roçado. Cuidava dela e, de vez em quando, trazia umas cobrinhas para ela se alimentar.

Quando tinha alguma dor de dente, ela mesma resolvia. Pegava um cordãozinho, amarrava em uma ponta no dente, enroscava a outra ponta em uma folha da janela do quarto, dava um tranco só, e lá ficava ele pendurado, com raiz e tudo. Fazia questão de mostrar a sua proeza para quem fosse visitá-la.

Foi atuante no nascimento de um dos filhos da Geralda, esposa do Antonio Ferreira. Ela, em trabalho de parto, se dirigia à Santa Casa de Guararema de charrete, mas parou em frente à casa da Tia, e a criança nasceu ali mesmo, saudável, por suas mãos, embaixo do pé de abacateiro.

Em um final de ano, véspera de ano novo, no final da década de setenta, o casal estava voltando de suas tarefas diárias pelo acostamento da estrada quando um caminhão passou raspando pela Tia Fininha. Abalroou o Tiozinho e ele veio a falecer.

A partir daí, quando todos pensavam que a Tia Fininha iria fraquejar ou voltar para perto de seus familiares, lá no bairro do Itapeti, ela decidiu continuar morando ali mesmo e tomar conta de tudo sozinha.

Em uma noite, acordamos ouvindo alguns dos seus gritos, vindos dos lados do armazém, seguidos de um tiro de espingarda. Quando lá chegamos, encontramos a Tia Fininha com a espingarda de dois canos na mão, o rosto meio chamuscado de pólvora, o cabelo todo arrepiadinho e mostrando um rombo na parte de baixo da porta de saída da venda. Foi logo falando:

− “Que pena, se o segundo tiro, por causa da espoleta moiada, não tivesse faiado, eu ia acertá direitinho a bunda dele”.

Certamente não passava de um ladrãozinho “pé de chinelo” que tentara forçar a porta, na tentativa de roubar algumas guloseimas e não teve moleza...

Tia Fininha, que falta você nos faz!!!

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A Tabuada do Nove

Estávamos em mil 1964. Pouco ou nada sabíamos que o nosso país passava por uma das fases mais difíceis de sua história. O único comentário que soubemos a respeito do golpe militar foi quando o Lico Freire, nosso vizinho e dono de um alambique próximo de nossa casa, não deixou a sua filha Ester ir à aula naquele 31 de março. Uns parentes dele, que moravam na capital, vieram visitá-lo e comentaram que viram tanques de guerra locomovendo-se em São Paulo e carros de efetivos do exército nas ruas.

Nossa vida era muito tranqüila e como os meios de comunicação resumiam-se a um radinho de pilha, não sabíamos nada sobre os porões da ditadura, torturas e AI-5, anos de chumbo, regime militar, falta de democracia, censura, perseguição e repressão política.

Nessa época eu estava no segundo ano, na Escola Rural da Freguesia da Escada. Levantava cedo, fazia as lições de casa, almoçava e aguardava os filhos do Zé Mineiro(Cida, Cristina e Rubens) para irmos juntos à aula. Todos iamos de bicicleta ou, eventualmente, quando o tempo estava ruim, eu pegava carona na charrete da Ester.

A escolinha ficava no alto de um barranco, próximo ao pátio da capela de São Benedito. Para chegar à entrada do prédio, que anos mais tarde eu percebi que era apenas uma casinha, subíamos uns degraus cavoucados na terra batida. Quando chovia, era um festival de escorregões. Havia somente uma sala de aula, dividida em três fileiras, uma para cada ano: a primeira fileira para o primeiro ano, a segunda para o segundo e a terceira para o terceiro.

O quadro negro, que na realidade era uma grande lousa pintada de verde oliva, também era dividido em três partes iguais. As mesinhas, chamadas carteiras, eram de madeira escura,pés de ferro e comportavam dois alunos. Na parte da frente havia o acento articulado de abrir e fechar. Em seu tampo tinha uma fenda para colocar os lápis e canetas tinteiros (ainda não existiam as esferográficas), e uma espécie de tinteiro com tampinha, mas já desativado, uma vez que servia para as canetas à pena, um pouco mais antigas. Embaixo tinha um espaço apropriado para colocar os cadernos que dividíamos com o companheiro do lado.

A primeira carteira de cada fileira não tinha o banquinho para acento, tinha só a mesinha. Os meninos sentavam com os meninos e as meninas com as meninas. Não havia forro no telhado e as telhas de barro davam passagem a gotículas de água quando das chuvas de verão.

No fundo da sala tinha um armário de madeira e vidro que servia para guardar a caixa de giz, o apagador e os livros que não podíamos levar para casa. O nosso material escolar era composto de um caderno brochura (capa e conteúdo grampeado no centro), cartilha “Caminho Suave”, de Branca Alves de Lima, para o pessoal do primeiro ano e outros livros didáticos para as demais séries,além de estojo e lápis de cor, na caixinha de papelão.Outros itens incluiam mata borrão e alongador de lápis(pois usávamos até virar um toquinho), frasco de cola goma arábica e frasco de tinta preta.

Havia uma mesinha com um filtro de barro cozido daqueles que, através de uma vela de cerâmica, filtra por gravidade e que mantém a água bem fresquinha.


Na mesa da professora ficava um vaso que revezávamos na renovação das flores para mantê-las sempre muito bonitas. Levávamos merenda de casa e na hora do recreio fazíamos uma roda na pracinha da chácara do senhor Buk, para lancharmos.

O banheiro ficava do lado de fora e servia tanto para os meninos como para as meninas. Sempre havia a necessidade de ir em dupla, pois, como não tinha trinco na porta , um ficava do lado de fora tomando conta, para não haver surpresas desagradáveis.

Não tinha servente ou alguém que cuidasse da limpeza; logo, fazíamos mutirão para isso.
Todos os dias, iamos até o ponto de ônibus esperar a professora chegar e, assim que ela descia, um aluno carregava a sua bolsa e outros cadernos e livros.

Ela era muito enérgica, bem ao estilo da educação nessa época. Jogava apagador nos alunos, batia com a régua na cabeça dos mais desatentos, puxava suas orelhas.Xingava e colocava apelidos como “Dito Argola” ao Antônio, já que no seu caderno havia muitas rodinhas em vez de palavras. Este apelido ficou com ele para toda a vida. Só faltava a palmatória que havia sido abolida das salas de aulas há algum tempo. Repressão total!

Em uma sexta-feira, a professora avisou que na próxima segunda-feira iria cobrar em chamada oral a tabuada, desde a do cinco até a do nove. Tabuada não era o meu forte, por isso passei o final de semana decorando, conforme a recomendação. Pedi ao meu pai para ajudar-me. Eu ia repetindo, e ele acompanhando. Tudo parecia na ponta da língua.

Chegou a hora da chamada, bem no finalzinho da aula. A professora chamou-me logo de imediato, visto que eu me sentava na primeira fileira (os menores sentavam-se na fileira da frente). Começou o “interrogatório”:
Ela falou com dura voz:
− Seis vezes seis!
Eu respondi:
− Trinta e seis.

E assim foi, ela “interrogando” sempre de maneira salteada e eu tenso, mas acertando todas: a do sete, a do oito, até que chegou a do nove.
Ela falou:
− Nove vezes sete!
Eu respondi acertadamente:
− Sessenta e três. Ela questionou, quase gritando:
− O quê?
− Oitenta e um.
− Quanto?

E eu mais nervoso ainda:
− Noventa e quatro.
E aí com o rosto vermelho, quase pegando fogo,perdi completamente a noção do que estava respondendo.
Ela foi logo intimando:
− Pode ficar naquele canto de castigo, por uma hora, estudando a tabuada do nove.
Fiquei ali pensando como eu iria chegar lá em casa depois desse vexame.
Meus amigos foram todos embora e eu retornei sozinho com a minha bicicleta, chorando bem baixinho por todo o caminho, com receio de que alguém me visse nessa situação.
Quando cheguei a minha casa, meu pai foi me receber na porteira e, com um longo abraço, me disse:
− Filho, não fique triste, pois o papai também não é tão bom em aritmética. Pegue a sua vara de pescar e vamos para a beira do rio, pois a mamãe está precisando de mistura para o jantar. Amanhã eu te ajudo nas lições de casa!

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Uma tarde à beira da lagoa

Todos os dias ele levantava muito cedo. Preparava o café, passava manteiga no pão e levava para a minha mãe Ruth, ainda na cama. Se fosse alguma data especial, como aniversário dela, aniversário de casamento, dia das mães, a bandeja verde florida era acompanhada por uma rosa bem bonita. Somente depois disso o meu pai Fernando saia para as tarefas diárias.

Normalmente, ia para os canteiros de verduras para regá-las bem cedinho, antes mesmo de o sol nascer. O cuidado era ainda maior na época de inverno, pois as manhãs eram muito frias e ocorriam geadas com freqüência. A água retirada com regador do “corguinho” servia para amenizar o efeito dos gelos nas folhas das hortaliças. Na maioria das vezes, eu o acompanhava sempre bem agasalhado. Mesmo assim, os meus pés ficavam duros de frio e as mãos dormentes, mas eu fazia questão de ir com ele.

Após todos esses cuidados com a horta, ele abria o armazém, recebia os pães e varria todos os cômodos e toda a frente apedregulhada do prédio, até a beira do asfalto. Eu sempre tentava ajudá-lo, mas, sendo uma criança de três anos de idade, mais atrapalhava do que ajudava. Mesmo assim, o meu pai jamais ralhou comigo, pelo contrário, sempre procurava me incentivar e dizia que era importante participar de todas as atividades, sendo que, quando chegasse o momento de ir para a escola, esta deveria ser a maior prioridade.

Ele não teve muitos estudos. Fez apenas os quatro primeiros anos do grupo escolar, mas a vida o ensinou muito. Sua escrita era algo incomum, toda desenhada, parecia caligrafia gótica. Por conta de sua atividade no comércio, tinha uma facilidade incrível nas quatro operações e, na maioria das vezes, fazia as contas de cabeça, sem o uso de lápis ou caneta.
Não existia ali ainda calculadora e tudo era registrado num caderno de anotações.

Numa tarde de folga (lembrando que meu pai revezava os afazeres da venda com o meu tio Juvenal), estávamos à beira da lagoa, ao lado do campinho de futebol, pescando, e entre uma fisgada e outra, ele ia me ensinando a iscar o anzol, a tirar o peixe da linhada, a colocá-lo no samburá, sempre conversando comigo como se fossemos dois amigos adultos.

Eu ainda falava errado. Dizia “óio”. O meu pai, paciente, corrigia:

-Meu filho, não é “oio” ´, é óleo.

Eu dizia “aio”, ele ensinava:

-O certo é alho.

Eu falava “anzor”, ele corrigia:

-Anzol, meu filhote.

Aproveitando o momento, continuou a prosa:

- Você, meu filho, já é um mocinho e ainda chupa chupeta. Está na hora de largar, pois nenhum adulto usa e é muito feio esse bico na boca!

Eu pensei um minuto, retirei-a da boca, relutei por um instante e atirei no meio da lagoa. Disse com convicção:

- Nunca mais eu vou usar chupeta.

Papai fez uma cara de espanto e com uma voz firme disse:

- Meu garoto, o homem só tem uma palavra. Eu não vou lhe dar outra chupeta, pois não se volta atrás de uma palavra dada.

Aquela noite foi muito comprida para mim. Eu rolava na cama de um lado para outro, pedia aos anjinhos da guarda para me ajudarem, contava carneirinhos, a minha boca enchia d’água, queria sentir o gosto e o cheiro “delicioso” daquele látex, até que adormeci. Outras noites vieram, cada uma eu dormia um pouco melhor até que me acostumei ficar sem a bendita da chupeta. Depois de muito tempo, eu soube que o meu pai havia guardado uma de reserva no canto do armário para qualquer emergência, mas essa nunca precisou ser usada.

Por muito tempo ele continuou a levar o café da manhã e uma rosa para minha mãe, em dias especiais, na cama. Minha mãe generosamente retribuiu todo esse amor, cuidando dele dia e noite por quinze anos seguidos, pois por causa de um AVC, ficou imobilizado e sem a fala. Porém, de maneira quase incompreensível, continuou sempre feliz e sorridente, oferecendo um gesto de carinho para cada um de nós da família e de todos que o visitavam.

Esses ensinamentos e tantos outros ficaram comigo para o resto da vida. Sinto muito a sua ausência, sinto falta do seu bom humor, das suas brincadeiras, do seu afago; principalmente, da maneira de encarar a vida, dos seus valores. Embora simples, tinha uma conduta irrepreensível.

Acho que foi por conta disso que nenhuma de minhas quatro filhas (Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela) usaram chupetas.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Dalila, a égua que pescava

A nossa égua Dalila era um animal diferenciado, pois mais parecia um bicho de estimação do que uma serviçal. Tinha um trote macio e era muito obediente. Todos os dias, recebia ração, milho, cana picada e muita água. Sua pelagem preta brilhava e, no mínimo duas vezes por semana, o seu pelo era raspado. Este ato era mais de carinho do que simples higiene. Suas ferraduras permaneciam sempre impecáveis. Dificilmente encontrava-se algum animal nas redondezas com melhor trato. Muito educada, podia trabalhar o dia todo fora que não fazia as suas “necessidades” na rua. Banhava-se na lagoa em dias mais quentes. Ela ficou aproximadamente 20 anos conosco, teve duas crias (o Sansão e a Princesa), que meu pai doou para a afilhada Cleide, filha do Pedro Melo.

Semanalmente íamos até o centro da cidade a fim de abastecer o armazém com algum mantimento que estivesse em falta no estoque. Às sextas-feiras havia a feira livre, o que nos dava mais opções de compras, uma vez que, naquela época, existiam poucos comércios e a cidade não passava de um pequeno vilarejo de mais ou menos cinco mil habitantes . Além do armazém do meu tio José Moreira, havia somente o do Seu Nicomedes, do Toninho Torralbo, a Loja do Shaim e o Bar do Doca.

Eu já tinha dez anos e estudava no Grupo Escolar Getúlio Vargas (já havia concluído os três primeiros anos na Escola Rural da Freguesia da Escada). Nessa época, minhas idas à cidade, por vezes, me causavam algum desconforto, pois eu tinha a incumbência de ficar tomando conta da charrete. Meu pai pedia para que eu segurasse o cabresto da Dalila ao lado da calçada. Assim, se algo a assustasse eu poderia segurá-la e acalmá-la, contendo o risco de ela sair em disparada.

Ocorre que as amiguinhas que estudavam comigo sempre caminhavam em grupinhos pelas ruas próximas à praça da matriz, passeando, enquanto eu ficava ali, parado, como se fosse um “flanelinha de charretes”, segurando no cabresto da égua. Fazia de tudo para que não me vissem nessa situação. Com esse intuito, eu ia rodando em volta da égua até que elas passassem para o outro lado. Com esta manobra, elas certamente não me viam, uma vez que eu era bem menor que a Dalila. E ali ficava até que elas voltassem ou outras amiguinhas por ali aparecessem, momento o qual pedia a realização da manobra novamente. É claro que estava longe de ser exatamente um bullying, mas o fato de eu morar na roça contribuía para que houvesse algumas piadinhas a respeito. Eu tinha alguma dificuldade em lidar com a minha timidez e também me sentia um pouco inibido pelo fato de eu puxar o caipirês na hora de ler a redação em voz alta; então, fazia de tudo para não me verem naquela situação que poderia gerar comentários.

Um dia, antes de retornar para o sítio, meu pai adquiriu algo diferente na loja de calçados e botas “Diamante”: um chicote muito bonito, de couro entrelaçado, que terminava em um cabo de madeira com detalhes de metal. O interessante é que esse instrumento nunca deveria ser utilizado na prática. Seria apenas um adorno para a charrete, objeto para dar maior elegância na condução da querida égua Dalila. Além de toda a selaria e indumentária necessária, como rédea, barrigueira, cabresto, freio, bridão, baixeiro, tapa-olho, tirante e retranca e buzina, também era importante exibir um belo chicote.

Neste dia, meu pai explicou:

-Não se devem fustigar os animais, pois esses precisam obedecer apenas com sinais. Com respeito, é possível conseguir confiança e fazer com que eles se tornem dóceis e obedientes.

Ao passar perto da Capela São José, subindo o morro do Ricardo Ramires, meu pai estalou o chicote no ar e comentou:

-Meu filho, toda vez que passar por aqui, lembre-se desse momento e dessa nossa conversa.

Meu pai Fernando, um contador de histórias maravilhosas, insistia que a Dalila de vez em quando pescava. Eu nunca soube ao certo se isso era mito ou verdade, pois nunca presenciei. Afirmava ele que, na época das cheias, quando as chuvas caiam intensamente, o ribeirão do Salto transbordava e o gramado de nosso campinho de futebol ficava cheio. Até aí tudo normal. Segundo ele, ao voltarem as águas para o leito do rio, sobrava algumas poças bem grandes e nelas permaneciam algumas traíras, muito comum por aquelas bandas. A Dalila, teoricamente, ia caminhando e pastando na graminha verdinha e úmida até que a traíra, sentindo-se ameaçada, dava uma bocada nos beiços da égua com aqueles dentes afiados e pontiagudos. Dalila, assustada, fazia um movimento brusco para o lado, jogando o peixe para longe, aonde meu pai ia com um samburá, só recolhendo os peixes.

Um episódio muito interessante ocorreu no início da década de setenta, quando compramos o nosso primeiro fusquinha, cor branca, ano 1961. Passamos a utilizá-lo cada vez com mais freqüência do que nos transportávamos com a Dalila, até abandonarmos de vez a charrete devido à complexidade na preparação do arreamento e isso mexeu demais com o brio da Dalila.

Quando eu estava manobrando o carro, no quintal de casa, para sairmos para as compras, ela veio em disparada e, aos coices, atacou ferozmente o nosso veículo, amassando grande parte da sua lataria. Foi um ciúmes nunca antes demonstrado. Também, coitada, ser preterida por causa de um simples e insensível Fusca!

Logo depois, o meu pai doou-a para alguém que a queria muito e morava bem longe. Daí, perdemos totalmente o contato com essa que praticamente fazia parte de nossa família. Hoje, minhas filhas até se emocionam quando conto as várias histórias dela. Que saudades da Dalila!!

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A caça ao tatu

Quando eu trabalhava no armazém, as tardes eram bem tranqüilas, pois o período de maior movimento dava-se na parte da manhã e ao anoitecer. Tínhamos o hábito de ficar sentados no banco do ponto de ônibus. Ali conversávamos sobre os acontecimentos e sempre com a presença de alguém que aguardava a chegada dos ônibus da Santa Maria Viação, com destino a Jacareí ou Mogi das Cruzes. Quase todos os caminhões que trafegavam na via davam uma buzinadinha e um aceno para nós. O meu pai conhecia grande parte dos caminhoneiros que por ali passavam, pois sempre paravam para um lanche, um refrigerante ou até mesmo uma caninha de alambique no fim do expediente. Bem pertinho dali, havia o Alambique do Salto, do Lico Freire, e a sua caninha era da melhor qualidade, destilada artesanalmente. Todos os apreciadores de uma boa aguardente elogiavam a sua qualidade.

A casinha do ponto de ônibus era coberta de telhas tipo francesa e abrigava um banco de cimento. Ao seu lado, havia um barranco com cerca de bambu, bem aparelhado, para impedir que estranhos adentrassem no quintal da casa dos meus avós. Acima do barranco, existia um pé de mexerica que de abril a agosto ficava carregada de frutos bem amarelinhos e muito doces.

Do outro lado da pista, ficava o armazém. Quando chegava algum freguês era só atravessar a rodovia para o devido atendimento.
Num final de tarde, estávamos eu, meu pai e meu primo Jorge, quando algo começou a se mexer, próximo a uma moita, junto ao barranco. Percebemos que havia algum bicho ali. O meu primo, que gostava muito de pescar e caçar, pediu para que ficássemos quietos para que fosse verificar de perto o que havia ali. Foi quando ele percebeu a presença de um tatu. Providenciou uma taquara retirada da cerca e saiu na captura do bichinho, que fugiu em disparada para entrar em uma toca no pé do barranco. Os tatus, para fazerem as suas tocas, cavam túneis muito profundos na terra mole. É na toca que passa a maior parte do dia e ela é tão grande que podem morar lá vários deles. Saem dela para pequenos passeios perto do entardecer.

O meu pai, achando que não se deveria matar e nem machucar o bichinho, foi tentar agarrá-lo com as mãos para levá-lo à sua toca, já que o tatu, quando é apanhado pelas costas e virado de barriga para cima, perde totalmente as forças e fica quietinho.

O meu primo Jorge, que em certas situações ficava meio afobado, não parava de dar taquaradas em direção ao tatu para tentar imobiliza-lo. O problema é que não encontrava o alvo e pelo menos umas três vezes acertou em cheio as mãos de meu pai.
Ele, normalmente, era muito calmo e sempre evitava gritar com as crianças. Porém, nesse momento, esbravejou:

- Pára com isso seu moleque! Está a fim de quebrar a minha mão?

Nisso o tatu, que de bobo não tinha nada, rapidamente saiu em disparada, foi beirando o barranco até sair num capão de mato e sumir no meio do brejo. 10 x 0 para o tatu!

Foi muito divertido o meu pai com a mão toda dolorida e o Jorge tentando pedir desculpas pelo ocorrido. Até hoje rimos muito quando relembramos dessa inusitada “caçada”.

Radinho de Pilha

A nossa casa ficava num plano abaixo do armazém, como se fosse um anexo a ele. Uma escada de onze degraus ligava os fundos da venda, que era no mesmo nível da estradinha de asfalto, à nossa sala.
Os dois quartos foram construídos no porão. Por isso, todos os passos que meu pai dava no assoalho no atendimento aos fregueses, de um lado para outro, eram ouvidos lá embaixo. Havia também uma cozinha com um fogão à lenha, uma chaminé (uma folha de alumínio era colocada no meio dela como se fosse uma válvula para regular a intensidade da fumaça), um armário de louças, uma mesa comprida e quatro cadeiras de madeira escura.
Na sala, havia uma cristaleira com alguns pratos e talheres que somente iam para a mesa quando recebíamos alguma visita ilustre. Ainda marcavam presença, estando cuidadosamente guardados ali, alguns copos e louças que meus pais haviam ganhado no casamento deles. A iluminação ficava por conta de um lampião Aladim, à querosene. Isto já era um avanço em relação às lamparinas de pavio, que soltavam muita fumaça e pretejavam todas as nossas narinas. A sala de visitas era um ponto de encontro de todos os tios e primos. O ambiente, sempre muito freqüentado, era super agradável, pois minha mãe Ruth, como faz até hoje, recebia muito bem a sobrinhada.
O chão de tijolos tinha que ser varrido todos os dias pela minha mãe, com vassouras de ramos colhidos no fundo do quintal e montadas em um cabo de madeira, amarradas por um cipó bem fininho. De vez em quando, as vassouras tinham de ser atadas em um cabo bem maior para que se limpasse o telhado, pois não havia forro nos cômodos, o que fazia juntar muitos picumãs.
Uma talha de barro acondicionava água, para ficar sempre muito fresquinha, e todos os dias era abastecida com a água do poço. O poço ficava estrategicamente próximo à saída da cozinha. Seu balde permanecia amarrado em uma corda que passava por uma carretilha. Dava um trabalho danado para encher o tanque na hora de lavar as roupas! Ao lado do tanque de pedra, um quarador e, mais a frente, um varal bem esticadinho completavam a área de serviço. Banheiro, só a privada do lado de fora.
No quintal, foram plantados muitos pés de frutas, que eram caprichosamente cuidados pelo meu pai Fernando. Podia se encontrar laranja baiana, mexerica, tangerina, mamão, araçá e ameixas. Ali, nos finais de tarde, era uma festa de tantas variedades de pássaros, como sabiá, sanhaço, azulão, maritaca, pássaro preto, pintassilgo, coleirinha, jacu, inhambu e tantos outros.
No pomar, era possível brincar de pega-pega, esconde-esconde, mocinho e bandido, amarelinha, pula corda e a área, que hoje a gente percebe bem menor, parecia uma enormidade. Fazíamos casinhas completas, enterrávamos taquaras emendadas, simulando um encanamento para água. Essas eram nossas brincadeiras, muito saudáveis e sempre monitoradas pelas nossas mães que ficavam sentadas ali por perto, bordando meias da marca Aço, que existem até os dias de hoje. Essas meias vinham da Tia Ana e da Vó Brasília amarradas em conjunto de 12 pares. Eram colocadas em uma fôrma e, após bordadas, seguiam para São Paulo. O bordado era uma maneira de ganhar algum dinheirinho e também um passatempo realizado entre um afazer doméstico e outro.
O rádio de pilha da marca Philips (nós achávamos que era Pilipis) ficava o dia todo ligado nos programas Silvio Santos (“Silvio Santos vem ai, laia, laia, laia...”), Hélio Ribeiro (“O poder da Mensagem”) e Barros de Alencar.(“Só sucessos...”). Os jingles eram muito fortes naquela época, sabíamos todos de cor e salteado.
Foi numa de nossas tardes de brincadeiras que um dos meus primos mais novos estava com a gente, no rádio começou a tocar uma propaganda de um inseticida da Shell, foi quando a minha irmã Kika agarrou-o pela cintura e saiu com ele pulando e dançando pela sala: “Shelltox mata moscas e baratas e se existe algum valente, Shelltox desacata, Shelltox é o melhor inseticida, contra insetos que não sabem é um suicida”. O problema é que ele estava com uma disenteria danada e não foi possível segurar. O meu primo ficou chorando e gritando, e todos nós rimos demais. Minha tia, sua mãe, não sabia se ria também ou se acudia o menino. Minha mãe correu, pegou a bacia e levou-o para o quarto mais próximo para dar –lhe aquele banho. O jingle ficou muito mais engraçado para nós, pois todas as vezes que o ouvíamos no rádio, lembrávamos esse episódio e novamente íamos às gargalhadas. A princípio, minha tia ficava um pouco chateada, mas com o tempo acostumou-se com a idéia.
Por isso é que, até hoje, mesmo com o advento da televisão, internet e tantos outros meios de comunicação, eu não deixo de ouvir rádio: este foi muito forte e presente em nossa formação. E dá-lhe jingle!!

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Circo do Beijinho

A primeira vez que assisti a um espetáculo circense foi no bairro de Luiz Carlos. Naquele tempo, o vilarejo era bem agitado. No meio da praça, havia um chafariz e, no seu entorno, várias casinhas. Existiam lá dois comércios, um na esquina da esquerda, do Sr. José Rego, e outro na esquina da direita, do meu tio João Moreira. No armazém do meu tio havia um telefone comunitário em formato de caixa de madeira, com um fone preto preso a um fio e uma espécie de microfone. O usuário girava uma manivela e chamava a telefonista que, por sua vez, atendia e completava a ligação. Havia também uma Estação da Central do Brasil. Trens com destino a São Paulo e ao Rio de Janeiro faziam paradas lá. Nos fundos da praça, aparecia a capela de São Lourenço cujas festas eram muito famosas.

Luiz Carlos também foi cenário para alguns filmes, o que movimentava a vila. Um dos mais famosos foi o “Gregório 38”, do diretor Alex Prado. Meu tio Augusto apareceu no papel de médico, com o seu inseparável violão quadrado, fabricado por ele mesmo. O meu primo Antônio Carlos era o menino jornaleiro e a prima Cida também fez figuração.

O circo do palhaço Beijinho ficava instalado em uma rua ao lado da casa do meu tio, que era continuação do prédio do armazém. Esse circo não tinha animais e praticamente toda a família do Beijinho compunha a trupe. Os espetáculos, embora simples, eram muito emocionantes, principalmente para nós, pois não tínhamos muitas opções de entretenimento. Além dos trapezistas, do engolidor de fogo, do mágico, do homem das agulhas no corpo, a atração máxima ficava por conta do próprio Beijinho, com suas palhaçadas e bordões, “esquê, esquê, esquê Bernarda!!!”. Eu nunca soube o significado disso. Lá, apresentavam também peças de teatro, como “O Menino da Porteira”, “A Aparição de Nossa Senhora”, “Marcelino Pão e Vinho”, entre outras. Artistas como Milionário e Zé Rico, Barnabé, Zilo e Zalo, Zelão Pininha e Verinha também faziam suas aparições. Estes artistas já tinham algum sucesso no rádio, o que melhorava o resultado da bilheteria.

Um picadeiro central, todo forrado de pó de serra, arquibancadas laterais de madeira e três mastros que serviam para aparar a lona formavam a estrutura do circo. No aparador central, que saía para cima da lona, ficavam umas bandeirinhas coloridas. Os próprios artistas tomavam conta da arrecadação do caixa, sempre instalado na entrada.

O circo peregrinava pelos arredores das cidades grandes e também por lugares mais afastados, como, por exemplo, na Freguesia da Escada, onde era muito comum encontrá-lo. Lá nós assistíamos a quase todos os espetáculos. Meu pai me levava junto com meu primo Jorge para lá a fim de termos subsídios para nosso cirquinho. Este era apresentado em minha casa, num galpão fechado, usado para guardar os arreios da égua, ferramentas, alguns pequenos maquinários e ração. Ali nós montávamos o nosso espetáculo. A minha irmã Kika ficava na bilheteria e, antes de liberar a entrada, distribuia os dinheirinhos de brincadeira. Eu fazia a apresentação (não esquecendo de dizer “Respeitável público...”) e tinha vários outros papéis. O Laudenir ficava com a incumbência de trazer novidades da “Praça da Alegria”, do saudoso Manuel da Nóbrega, pois naquela época só esse meu primo tinha televisão. Encenávamos, então, “A Velha Surda”, “O Bronco”, “O Menino de Itú”, “Catifunda”, entre outros. Todos achavam muita graça e pediam outras apresentações. O público era formado pela Tia Rosa, Tia Odete, minha mãe Ruth, Tia Ana e elas iam divulgando o nosso circo e chamando outras pessoas para as demais sessões.

Além desses, inspirados no circo do Beijinho e na Praça da Alegria, nós criávamos outros tipos inéditos como o “Chiquitão” (parodiando o Tio Chiquito), o “Padre Italiano”, o “Velho Caipira” e outros. Havia também o show de mágica e todos fingiam não perceber os truques. Os personagens femininos ficavam sempre para o meu primo Jorge, pois era o mais gordinho, o que favorecia que ressaltássemos suas pernas em vestidos curtos, emprestados de minha irmã. Uma peruca de linha de seda para bordar meias completava o seu figurino. Algumas cordas penduradas no telhado fomavam o trapézio.

Há pouco tempo, assistindo a uma entrevista em um programa de televisão, tive grata satisfação ao saber que o palhaço Beijinho, nosso ídolo e inspirador, está muito bem de saúde, morando no interior de São Paulo e, para maior e mais agradável surpresa, descobri que ele é o pai da dupla sertaneja de muito sucesso Edson & Hudson, hoje cantores solos.

Toninho e o grão de feijão mulatinho

A minha casa dificilmente ficava vazia. Embora meus pais tivessem somente um casal de filhos, os primos estavam sempre conosco. Os filhos da tia Helena e do tio Raul (Cida, Ana Maria, Pedro, João, Toninho e Jorge) perderam a mãe precocemente, e, por isso, viviam com a gente lá na roça. O mais novo, o Jorge, permanecia em casa durante todos os dias de suas férias escolares e ainda voltava para a sua casa reclamando. Os demais vinham nos visitar em alguns finais de semana, visto que, além da escola, tinham outras obrigações em Mogi das Cruzes, onde moravam.

O primo Laudenir, filho da tia Ana e do tio José Moreira, também adorava ficar conosco. A minha mãe era como se fosse a mãe dele, e a dele como se fosse minha. Sempre fizemos questão de nos apresentar como primos-irmãos.

Dormíamos e acordávamos com as galinhas para poder aproveitar bem o dia, e este parecia ser mais longo do que é hoje, pois dava para fazer inúmeras brincadeiras. Antes de dormir, programávamos todo o próximo dia. A primeira atividade, invariavelmente, era ir ao retiro de leite do Sr. Dorival Arruda segurando um copo americano com um pouquinho de açúcar no fundo para tomar o leite diretamente da vaca. Ali ficávamos até o Valdomiro, filho do Sr. Dorival, picar o capim, misturá-lo com o farelo, tratar das vacas, dos bezerros e dos novilhos. Às vezes, havia ainda uma seção de vacinação contra a aftosa, atividade a qual achávamos muito interessante acompanhar.

Voltávamos para casa e preparávamos as tralhas para pesca, pois no almoço a minha mãe sempre esperava um incremento na mistura. Naquele tempo, o Ribeirão do Salto ainda não tinha nenhuma poluição e o volume de água era muito maior que atualmente. Havia muitas variedades de peixes: lambari, cará, bagre, traíra, mandi e outros. Estes nós pescávamos com anzol e minhoca, porém outros, como o sagüiru e o cascudo, somente pegávamos no covo de bambu preparado pelo meu pai.

Após o almoço, íamos nadar no riacho, mas só depois da liberação de minha mãe, pois a comida precisaria “baixar” e sempre ouvíamos histórias de pessoas que tiveram problema nadando de barriga cheia. À tarde, brincávamos no pomar ou andávamos a cavalo. Para terminar o dia, jogávamos futebol no campinho ao lado de casa.

Foi em uma tarde de verão, quando o sol já estava se pondo, que eu e meu primo Toninho resolvemos ficar no pomar chupando mexerica. No final do quintal, havia uma eira com feijão mulatinho, que ali estava para secar, pois antes das vagens serem malhadas com a vara e os grãos ensacados, tinham de passar por esse processo de secagem. Foi então que o meu primo teve a idéia de fazer uma pegadinha comigo: colocar dois grãos em meu ouvido, um de cada lado, apertando-os entre os dedos polegar e indicador e soltando lá dentro da minha orelha. Como eu percebi a brincadeira, não deixei que a fizesse em mim, e ele fez uma demonstração nele mesmo de como seria essa idéia de me assustar. Ele virou a cabeça para que o feijão de um lado caísse. Nisso, na orelha que ficou p cima entrou o feijão. Neste momento, um dos grãos caiu no chão e o outro adentrou parcialmente no seu ouvido. Mesmo batendo e chacoalhando a cabeça, este não saia de jeito nenhum. Tive a iniciativa de buscar um grampo de cabelo da minha irmã Kika para tentar puxá-lo para fora. No entanto, em vez de puxar, empurrei. Foi aí que ele sumiu totalmente para dentro do canal auditivo. Nesse instante, a minha mãe apareceu e percebeu que alguma coisa não estava bem. Depois de alguma resistência, resolvi contar que o Toninho estava com um grão de feijão alojado dentro do ouvido.
Nessa época, em Guararema, só existia uma Santa Casa e mesmo assim os médicos não faziam plantão. Só iam uma ou duas vezes por semana e os casos mais graves eram transferidos para outros centros. Os partos eram feitos pela Dona Balbina e todos nós nascíamos em casa. Otorrinolaringologista, nem pensar.

A alternativa seria o Zé da Bala, dono da única farmácia, localizada na praça da matriz, na mesma calçada que a barbearia do Viriato. Era do tipo “faz tudo”, receitava e aplicava penicilina (e essa eu nunca esqueço, pois doía muito), tratava torcicolo, bronquite, tosse comprida, sinusite, sarampo, caxumba, bucho virado, nó nas tripas, constipação e aos domingos tratava das contusões dos atletas de futebol, pois atuava como massagista do time Guararema F.C.

Meu pai achou melhor colocar o Toninho na garupa da bicicleta e sair imediatamente pedalando rumo à farmácia do Zé da Bala, que ficava a uns cinco quilômetros de casa. Como era normal nesses apuros, ficamos lá sentados na calçada, eu, minha mãe e minha irmã, pensando no que poderia ter acontecido. Será que o feijão iria nascer dentro da cabeça? Teria que operar para retirar o grão? Abrir a cabeça? O meu pai ia pedalando e tentando manter o Toninho o mais calmo possível, mas também não estava tão seguro da situação, pois não sabia o que o Zé da Bala poderia recomendar nesse caso. Parecia uma situação complicada que poderia causar outros danos: dores de ouvido, infecção... E o que falar para o meu tio Raul, que era bem severo com os filhos?

Chegando à farmácia, meu pai contou em detalhes o que havia ocorrido. O Zé da Bala pensou um instante, perguntou quanto tempo havia ocorrido o fato e, na certeza de que o feijão ainda não havia inchado o suficiente para ficar instalado lá dentro, pegou uma seringa com água morna e uma tigela. Pediu ao Toninho que a segurasse na altura do ombro, logo abaixo da orelha, e jogou um jato bem forte lá dentro. O feijão saiu imediatamente, como um foguete, e caiu dentro da tigela. O meu primo, que até então estava apavorado, ficou aliviado.

Antes de voltar para casa, passaram no armazém do Doca e tomaram uma Tubaína. Retornaram rindo muito da situação. Imaginem só um pé de feijão germinando no tímpano do menino e nascendo de dentro da cabeça!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

As salsichas do Português

Nas décadas de 50 e 60, quando ainda não havia os supermercados com serviços de auto-atendimento, eram muito comuns os armazéns de secos e molhados.

Esses comércios eram chamados também de vendas e, tanto nos centros das cidades quanto nos bairros mais afastados, existia ao menos um desses estabelecimentos, os quais serviam tanto aos moradores do seu redor, quanto aos funcionários das fazendas, sítios vizinhos e viajantes de passagem por ali.

Meu pai Fernando tinha um desses em sociedade com o meu tio Juvenal e em torno de sua venda muitos acontecimentos ocorriam. Vários causos eram contados, muitas barganhas e negócios eram fechados. Também funcionava como ponto de encontro e fonte inesgotável de atualização dos fatos, pois os meios de comunicação ainda engatinhavam e em nossas casas somente os rádios de ondas médias nos colocavam em contato com o mundo. A vendinha chamava-se “Armazém de Secos e Molhados São José”. Foi construída pelo meu avô Antonio Moreira e , inicialmente , funcionava como botequim. Lá havia comidas e bebidas, com destaque para a pinga servida aos trabalhadores da estrada velha São Paulo - Rio. Ainda não existia a via Dutra e aquela era a única ligação para o Rio de Janeiro. Assim que meu tio José casou-se com a minha tia Ana, montou o armazém e nele ficou até o nascimento do seu filho Laerte. Meu pai, que já trabalhava com eles, assumiu as atividades desse comércio quando houve a possibilidade da família proprietária mudar para o centro da cidade.

Lá se vendia de tudo um pouco. Desde arroz, feijão, sal, banha de porco, salame, mortadela, ovo caipira e café para torrar, até utensílios, como baldes, bacias, panelas, machados, foices, caixas de fósforos, corda, fumo de rolo, tinta guarani, parafuso, lâmina de barbear, chapéu de palha, cola goma arábica, caderno brochura, papel de cartas, encordoamento de violão, pavio para lamparina, Kichute, Alpargatas, roda, cibalena, leite de colônia, pincel de barbear, canivete, pilhas Rayovac e Everedy, moringa de barro, bola de gude, pião, linha Corrente, tinta para tingir tecido Guarany, despertador West Clock, pedra de afiar, lampião de querosene, Neocid em pó. Enfim, os fregueses não necessitavam sair para as cidades circunvizinhas para fazerem as suas compras.

Tudo era a granel e precisava ser servido individualmente. O feijão, o arroz e o milho eram acondicionados em sacos de estopa e ficavam empilhados no depósito de grãos. Após serem colocados em caixas de madeiras com tampas, eram pesados, na presença do freguês, na balança Filizola , vermelha, e colocados em saquinhos de papel de um, dois, três ou cinco quilos, com uma concha de zinco. A balança ficava em cima do balcão , à vista do cliente, que sempre dava uma passadinha de olho a fim de conferir o peso da mercadoria. O dinheiro era cuidadosamente colocado em uma gaveta sob o balcão, com separações para os diversos valores.

O prédio tinha duas portas de entrada e dois depósitos, um de mercadorias ensacadas e outro de bebidas. Nas prateleiras, ficavam os litros de Pingas, Vermutes, a batida de limão e coco, a Groselha, o Conhaque, a Catuaba, o Fernete. Acima do balcão, havia uma tábua que ia de uma prateleira a outra. Nela eram cuidadosamente dependuradas as mortadelas e os salames. Num dos cantos da prateleira, ficavam expostas as lingüiças frescas e as calabresas. Também havia as caixas de produtos salgados, como bucho de porco e os peixes manjubas, savelia e mulato preto. A carne seca era colocada em uma mesinha nos fundos.

Os doces, como maria mole, paçoquinha, cocada, pé de moleque, gibi, teta de nega, abóbora, batata, suspiro, tinham um destaque num dos cantos do balcão, dentro de um móvel de madeira e vidro o qual parecia um armarinho. Este era fechado com duas portinhas de correr. Havia também um pote de barro com água fresquinha que normalmente servia os transeuntes. Era muito comum beberem também água com groselha. Devido ao armazenamento da água no recipiente de barro, a bebida ficava refrescante mesmo com a falta da geladeira. Esta era um acompanhamento perfeito para o sanduíche de pão com mortadela, fatiada à faca, ou para um lanche de sardinha em lata com cebolada picada. O pão chamava-se filão.

As demais bebidas ficavam no depósito da esquerda e as opções não eram muitas: guaraná e soda, da Antártica e Brahma, respectivamente, e cerveja também dessas marcas. Somente no final dos anos sessentas surgiram a coca-cola, a fanta laranja e a fanta uva. Não se consumia refrigerante como nos dias de hoje, pois, por falta de energia elétrica, não podiam ser gelados.

Num armazém, o freguês entregava a lista de compras ao vendedor, ou seja, não era ele mesmo que pegava as mercadorias na prateleira. Uma lista básica continha: arroz, feijão, açúcar cristal, sal, farinha de trigo, farinha de milho, banha, sabão em pedra, sabonete, pasta de dente e fósforos.

As atividades do dia a dia no armazém eram revezadas entre o meu pai e meu tio. Meu pai era o responsável no domingo; o meu tio, na segunda. Assim ia até o sábado, quando os dois trabalhavam juntos, devido ao grande movimento de clientes. Estes chegavam dos sítios vizinhos e até de outras localidades e o sábado era o dia no qual os fregueses da roça vinham comprar.

Toda quarta-feira, chegava por volta do meio-dia o caminhão do português Amadeu, trazendo a mortadela, o salame, o bacalhau, a lingüiça, os queijos de diversos tipos e os demais produtos desta linha. Eu, a minha irmã Kika, o meu primo Antônio Luiz e a minha prima Maria Inez (os meninos com sete e as meninas com quatro anos) ficávamos atentos quando da chegada do Português, pois sempre ele ia até o baú do caminhão, pegava quatro salsichas e distribuía uma para cada criança. Agradecíamos e íamos todos felizes para as nossas casas nos deliciando com aquelas que, na maioria das vezes, se tornavam nossa mistura naquele dia.

Foi numa dessas quartas-feiras, enquanto brincávamos na casa do tio Juvenal, do outro lado do rio, que o episódio que irei relatar ocorreu. Era dia de meu tio cuidar das plantações e do meu pai ficar no comando do armazém. Para a felicidade da criançada, o português encostou aquele velho caminhão em frente à venda. Eu e minha irmã saímos em disparada, pois, se o português fosse embora, adeus salsichas. Para irmos de lá para perto do caminhão tinha uma passagem de madeira sob o rio, logo à frente a estradinha e o ao lado ficava o armazém. O meu primo pediu para esperá-lo e saiu também atrás da gente. O meu tio Juvenal, sempre muito severo na educação dos filhos, ordenou:

- Pare imediatamente e volte para casa!

Mas o meu primo nem deu ouvidos e saiu correndo em direção ao Português e seu caminhão. O meu tio, percebendo que não fora atendido, saiu gritando:

- Eu te pego, seu moleque desobediente!

O Antônio Luiz correu e correu, mas estava na iminência de ser alcançado. Tentando fugir da surra e ao mesmo tempo indo em busca da tão desejada salsicha, pulou dentro do ribeirão. Naquele momento, ele nem se lembrou do fato de que não sabia nadar, o desespero para alcançar a salsicha e não ser alcançado por seu pai era muito grande! Tio Juvenal se jogou na água de roupa, de bota de borracha nós pés e de chapéu de palha na cabeça e o apanhou, nadando com ele até a outra margem.

Ali, meu primo ainda atordoado apanhou pela primeira vez por ter desobedecido, saído sem o consentimento de seu pai. Quando retornou para a casa, puxado pelo braço, a surra pelo salto no rio foi ainda mais elaborada, pois lá havia sempre pronta uma varinha de marmelo que esperava atrás da porta para esses momentos de desobediência plena. Ainda bem que a lei das palmadinhas ainda não existia, senão...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Meu avô, meu mestre!

Com olhar calmo, sempre mirando o horizonte, pausadamente comentava: como a natureza é bela e sábia! Nascido por volta de 1890, tinha idéias revolucionárias e extremamente avançadas para o seu tempo. Preocupava-se com as nascentes e com a poluição do solo. Quando ainda ninguém falava sobre reciclagem, o meu avô materno Antonio Moreira já separava os vidros, os alumínios, os papelões, não atirava na terra nada que pudesse contaminá-la e fazia questão de explicar para todos nós que o solo tinha que ser muito bem cuidado, senão seria impossível as plantações vingarem. Os terrenos eram por ele muito bem cuidados para que não houvesse erosões. Também, dizia que o bem mais preciso do planeta seria um dia a água potável. Não tinha nenhuma escolaridade formal, mal e mal escrevia o seu nome e soletrava apenas algumas palavras, mas tinha uma vivência e uma inteligência raras. Na sua humildade de homem sem formação acadêmica, era um sábio. Era severo na educação dos filhos e, por conseguinte, dos netos. Tinha uma fé inabalável e fazia questão de iniciar a todos no temor a Deus. Adorava tocar viola e assistir aos jogos na beira do campo de futebol. Para ele, compadre era parente e amizade, um tesouro.
De sorriso contido, tinha um semblante sério, parecendo uma pessoa brava, mas no íntimo era muito amável e divertido.
Já havia nascido sete dos seus oitos filhos, Deoclésia, João, Helena, José, Augusto, Juvenal e Bento, quando adquiriu um sítio á beira da estradinha de terra que era a única ligação rodoviária entre São Paulo e Rio de Janeiro. Foi barganhado por um casinha, cuja propriedade passou a ser do Sr. Adelino Lima, com localização próxima às margens do rio Paraíba, em Guararema. Naquela época, minha tão querida cidade era detentora de meia dúzia de ruas, ainda sem pavimentação, e de população bem pequena. No sítio que adquiriu, construiu a casa sede e mudou-se para lá, onde nasceu a sua filha mais nova, minha mãe Ruth, que mora nesta mesma casa até os dias de hoje.
De todas as suas dezenas de netos, eu tive o privilégio de ter convivido mais tempo ao seu lado, pois, além de ter morado até os dez anos bem pertinho de sua casa, começamos a morar juntos quando mudamos para sua casa do sítio no momento em que minha avó Gasparina adoeceu (por conta de um AVC). Com a mudança, minha mãe pôde cuidar dela até os seus últimos dias.
Quando saíamos para caminhar entre os arvoredos, a explicação sobre as plantas era muito elaborada. Para que servia um guatambu, o que era uma árvore mamica de porca, um jacaré, uma pata de vaca, um ingazeiro, uma aroeira, uma embaúba, uma figueira, um jacarandá, uma quaresmeira, Ipês de todas as cores e tantos outros esclarecimentos estavam presentes nas conversas. Também, explicava detalhadamente como encabar uma foice, uma enxada, um machado, embora soubesse perfeitamente que talvez nunca fôssemos utilizar esses utensílios para a nossa profissão.
Exímio carpinteiro, tinha muitas habilidades manuais. Era muito organizado e seu lema era: “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. As suas ferramentas eram rigorosamente guardadas em suas devidas prateleiras e todas permaneciam minuciosamente afiadas e bem cuidadas. Mantemos até hoje muitas de suas peças no sítio, confeccionadas por ele próprio, como roda de ralar mandioca, fuso para prensa canga, canzis e moenda de cana de açúcar.
Os passeios a cavalo eram uma verdadeira aula, pois ele me ensinava desde como preparar a montaria até a maneira correta de conduzir o animal. Nos passeios, era sempre elegante na vestimenta: usava um chapéu de feltro marrom da marca Cury, camisa xadrez, calça cáqui e botinas de couro. Cabelo sempre bem penteado, barba feita e bigode aparado. Um relógio de bolso e óculos para leitura compunha o seu visual.
Quando nós ainda morávamos na casa do armazém, do outro lado da estrada, pelo menos uma vez na semana o meu avô e a minha avó iam nos visitar. Era a maior alegria! De tantas e tantas passagens, a seguinte me marcou profundamente. Eu tinha por volta de seis anos e minha irmã Kika, três. Numa noite, ao ouvir o barulho deles chegando, fiquei tão contente que joguei uma girafinha, meu primeiro e único brinquedo, para o alto. Ela chocou-se com o suporte que aparava as panelas, localizado em cima do fogão à lenha, quebrando-o e fazendo com que todos os utensílios caíssem ao chão. Uma delas, a mais cobiçada de todas, a de pressão, teve seu cabo quebrado. Lembre-se de que, naquele tempo, uma panela de pressão era a maior raridade.
Nessas visitas, ele sentava-se numa tripeça de madeira, bem baixinha, e ali ficávamos juntos brincando de cavalinho com meu brinquedo. Montava os arreios na girafinha e explicava, detalhe por detalhe, como encilhar um animal, fazer arreios, preparar o couro e trançar um laço. Era uma verdadeira aula. Eu tinha a maior curiosidade de aprender sobre tudo, característica bem comum às crianças, principalmente numa época em que a comunicação era muito restrita aos contatos e às relações interpessoais. Até hoje guardo com muito zelo esse meu primeiro brinquedo. Minhas filhas Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela brincaram com a girafinha e agora o meu neto Lorenzo, de três anos, tem por ela o maior carinho. Aliás, ele acha que é dono dela, mas sempre na hora do fim da brincadeira ele a guarda no lugar especial a ela reservado em minha casa e diz que ele não leva embora porque eu tomo conta dela.
A girafinha foi o meu primeiro brinquedo e, sem dúvida, é o objeto que mais me faz lembrar do meu querido avô, aquele que foi e será meu eterno mestre.
Muitos da sua descendência tem um pouco dele, os filhos, os netos, os bisnetos e tataranetos, o que nos faz uma família muito unida e diferenciada.
Convivi intensamente com ele até final, nos anos 70, e estive ao seu lado nos seus últimos instantes de vida. Quantas saudades!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Clássico é classico e vice versa

Na sexta-feira, iniciávamos todos os preparativos para a partida de futebol do domingo à tarde. A bola de couro escuro ficava em baixo do balcão do armazém de meu pai e era cuidadosamente enchida com uma bomba, que também servia para os pneus das bicicletas e da charrete. Logo após, passava-se bastante sebo de boi em seu entorno para que melhorasse a sua impermeabilidade, uma vez que ela sempre caia ou no riozinho, que ficava de um lado, ou na lagoa, que se encontrava do outro. O sebo também tinha a finalidade de melhorar a durabilidade do couro, já que para comprar uma bola nova era necessário muito esforço e sucessivas vaquinhas.



O sábado era reservado para as preparações mais demoradas, como aparar a grama, arrancar as touceiras e as inevitáveis guanchimbas, muito mais difíceis de se tirar, devido ao fato destas não poderem ser apenas aparadas, pois deixavam talos pontiagudos que poderiam machucar os nossos pés.



Sempre jogávamos as peladas do meio da semana descalços e somente no jogo de domingo é que calçávamos as chuteiras. Era impossível usá-las com muita freqüência, pois poderíamos estragá-las rapidamente e a compra de uma nova era muito difícil. Estas chuteiras se apresentavam bastante diferentes das atuais, pois eram fabricadas com couro muito duro e tinham três carreiras de travas pregadas nas solas. Quando se soltava alguma delas, era necessário repregá-las utilizando um pé de ferro. O final da preparação era a demarcação. Utilizando um carrinho de mão, íamos espalhando caulim e assim se formavam as linhas brancas do campo. Primeiro fazíamos linhas laterais, depois as do meio do campo e do circulo central, em seguida as das grandes e pequenas áreas e, por fim, a marca do pênalti. Para o domingo, restava apenas a colocação das redes em suas respectivas traves.



Recordo-me de um jogo muito especial. Um clássico da região: o EC 77 x Marrons FC. Partidas entre estes dois times sempre vinham cercadas de muita expectativa e ansiedade. Não havia favorito.



O nosso time, o EC 77, vinha de várias vitórias seguidas e tinha no elenco o melhor meia esquerda daquelas redondezas: o meu tio Juvenal. Ele tinha muita facilidade no drible, além de visão de jogo bastante apurada. Chutava bem forte, tanto com o pé esquerdo quanto com o direito. Em todas as partidas, fazia vários gols e dependíamos muito do seu desempenho para ganharmos os jogos. Como ele trabalhava em sistema de revezamento de horários, na fábrica de papel Simão, era impossível estar conosco todos os domingos. Mais um motivo para esta ser uma partida muito importante é que, naquele dia, ele trabalharia até as 14h00 e chegaria a tempo de entrar em campo para o confronto.



Eu e meu pai Fernando tratamos de fechar o armazém a tempo de almoçar e ir para a beira do campo a fim de preparar os últimos detalhes. O jogo de camisas listradas já estava separado e os calções azuis já tinham sido cuidadosamente colocados na mala.



Aos poucos, foram chegando os atletas. O Luizinho goleiro e o Tião Rafael vieram de bicicleta; o Tião Arruda, seu irmão Valdomiro e o Valter Moreira estavam a pé, pois moravam bem pertinho; o Antônio Ferreira, como sempre, de charrete; o tio José Moreira apareceu com sua Brasília vermelha, trazendo os demais integrantes da equipe: o Laerte e o Laudenir. Era só esperar a chegada do craque, colocar os uniformes e começar o jogo, visto que o time adversário já estava batendo bola há algum tempo, no lado do campo que formava uma grande sombra sob a árvore das cigarras.



Por volta das 15h00, o ônibus que trazia os funcionários da fábrica parou ao lado da estrada e dele só desceu o João Alves. Como eventualmente o meu tio ficava um pouco mais para cobrir alguma falta do seu sucessor no turno de trabalho, resolvemos que iríamos iniciar a partida sem a sua presença. O meu tio José Moreira, que também acumulava a posição de beque central e técnico, chamou-me em um canto e, pela primeira vez, recebi a camisa 10 do EC 77! Aquele jogo, como não poderia ser diferente, foi muito pegado e o resultado extremamente apertado. O Marrons FC fez um a zero no primeiro tempo e somente aos quarenta e dois da segunda etapa, conseguimos empatar. Após um cruzamento da esquerda, do meu primo Laudenir, matei a bola com alguma dificuldade no joelho, e, de pé direito, chutei no ângulo...

GOOOOOOL!! Empatamos, assim, a partida!



Terminado o jogo, recebemos a notícia de que o meu tio Juvenal havia se acidentado numa manobra com a empilhadeira que trabalhava. Foi hospitalizado e durante meses ficou o medo de que ele nem ao menos pudesse caminhar. Os médicos não tinham nenhuma expectativa em relação a sua recuperação. Porém, com muita força de vontade, muita fisioterapia e devido ao fato de ser um excelente atleta, não só voltou a andar como também desfilou a sua categoria nos gramados de Guararema pelos trinta anos seguintes, pois até os setenta anos de idade era ainda um craque na arte de jogar futebol!



A partir daí, herdei de meu tio a mais famosa camisa de nosso time. A primeira camisa 10 a gente jamais esquece!