quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Dalila, a égua que pescava

A nossa égua Dalila era um animal diferenciado, pois mais parecia um bicho de estimação do que uma serviçal. Tinha um trote macio e era muito obediente. Todos os dias, recebia ração, milho, cana picada e muita água. Sua pelagem preta brilhava e, no mínimo duas vezes por semana, o seu pelo era raspado. Este ato era mais de carinho do que simples higiene. Suas ferraduras permaneciam sempre impecáveis. Dificilmente encontrava-se algum animal nas redondezas com melhor trato. Muito educada, podia trabalhar o dia todo fora que não fazia as suas “necessidades” na rua. Banhava-se na lagoa em dias mais quentes. Ela ficou aproximadamente 20 anos conosco, teve duas crias (o Sansão e a Princesa), que meu pai doou para a afilhada Cleide, filha do Pedro Melo.

Semanalmente íamos até o centro da cidade a fim de abastecer o armazém com algum mantimento que estivesse em falta no estoque. Às sextas-feiras havia a feira livre, o que nos dava mais opções de compras, uma vez que, naquela época, existiam poucos comércios e a cidade não passava de um pequeno vilarejo de mais ou menos cinco mil habitantes . Além do armazém do meu tio José Moreira, havia somente o do Seu Nicomedes, do Toninho Torralbo, a Loja do Shaim e o Bar do Doca.

Eu já tinha dez anos e estudava no Grupo Escolar Getúlio Vargas (já havia concluído os três primeiros anos na Escola Rural da Freguesia da Escada). Nessa época, minhas idas à cidade, por vezes, me causavam algum desconforto, pois eu tinha a incumbência de ficar tomando conta da charrete. Meu pai pedia para que eu segurasse o cabresto da Dalila ao lado da calçada. Assim, se algo a assustasse eu poderia segurá-la e acalmá-la, contendo o risco de ela sair em disparada.

Ocorre que as amiguinhas que estudavam comigo sempre caminhavam em grupinhos pelas ruas próximas à praça da matriz, passeando, enquanto eu ficava ali, parado, como se fosse um “flanelinha de charretes”, segurando no cabresto da égua. Fazia de tudo para que não me vissem nessa situação. Com esse intuito, eu ia rodando em volta da égua até que elas passassem para o outro lado. Com esta manobra, elas certamente não me viam, uma vez que eu era bem menor que a Dalila. E ali ficava até que elas voltassem ou outras amiguinhas por ali aparecessem, momento o qual pedia a realização da manobra novamente. É claro que estava longe de ser exatamente um bullying, mas o fato de eu morar na roça contribuía para que houvesse algumas piadinhas a respeito. Eu tinha alguma dificuldade em lidar com a minha timidez e também me sentia um pouco inibido pelo fato de eu puxar o caipirês na hora de ler a redação em voz alta; então, fazia de tudo para não me verem naquela situação que poderia gerar comentários.

Um dia, antes de retornar para o sítio, meu pai adquiriu algo diferente na loja de calçados e botas “Diamante”: um chicote muito bonito, de couro entrelaçado, que terminava em um cabo de madeira com detalhes de metal. O interessante é que esse instrumento nunca deveria ser utilizado na prática. Seria apenas um adorno para a charrete, objeto para dar maior elegância na condução da querida égua Dalila. Além de toda a selaria e indumentária necessária, como rédea, barrigueira, cabresto, freio, bridão, baixeiro, tapa-olho, tirante e retranca e buzina, também era importante exibir um belo chicote.

Neste dia, meu pai explicou:

-Não se devem fustigar os animais, pois esses precisam obedecer apenas com sinais. Com respeito, é possível conseguir confiança e fazer com que eles se tornem dóceis e obedientes.

Ao passar perto da Capela São José, subindo o morro do Ricardo Ramires, meu pai estalou o chicote no ar e comentou:

-Meu filho, toda vez que passar por aqui, lembre-se desse momento e dessa nossa conversa.

Meu pai Fernando, um contador de histórias maravilhosas, insistia que a Dalila de vez em quando pescava. Eu nunca soube ao certo se isso era mito ou verdade, pois nunca presenciei. Afirmava ele que, na época das cheias, quando as chuvas caiam intensamente, o ribeirão do Salto transbordava e o gramado de nosso campinho de futebol ficava cheio. Até aí tudo normal. Segundo ele, ao voltarem as águas para o leito do rio, sobrava algumas poças bem grandes e nelas permaneciam algumas traíras, muito comum por aquelas bandas. A Dalila, teoricamente, ia caminhando e pastando na graminha verdinha e úmida até que a traíra, sentindo-se ameaçada, dava uma bocada nos beiços da égua com aqueles dentes afiados e pontiagudos. Dalila, assustada, fazia um movimento brusco para o lado, jogando o peixe para longe, aonde meu pai ia com um samburá, só recolhendo os peixes.

Um episódio muito interessante ocorreu no início da década de setenta, quando compramos o nosso primeiro fusquinha, cor branca, ano 1961. Passamos a utilizá-lo cada vez com mais freqüência do que nos transportávamos com a Dalila, até abandonarmos de vez a charrete devido à complexidade na preparação do arreamento e isso mexeu demais com o brio da Dalila.

Quando eu estava manobrando o carro, no quintal de casa, para sairmos para as compras, ela veio em disparada e, aos coices, atacou ferozmente o nosso veículo, amassando grande parte da sua lataria. Foi um ciúmes nunca antes demonstrado. Também, coitada, ser preterida por causa de um simples e insensível Fusca!

Logo depois, o meu pai doou-a para alguém que a queria muito e morava bem longe. Daí, perdemos totalmente o contato com essa que praticamente fazia parte de nossa família. Hoje, minhas filhas até se emocionam quando conto as várias histórias dela. Que saudades da Dalila!!

3 comentários:

  1. Oi pai!!!Linda história!!!
    Essa da Dalila é especial!
    Saudades do vô Nando!
    Beijinhos, saudades, logo estarei por aí!!!

    ResponderExcluir
  2. Q animal distino, a Dalila! Mt interessante! Já ouvi essa história ao vivo e lê-la também é muito bom!

    Abraço, João! Continue escrevendo, pois garanto que continuarei lendo!

    ResponderExcluir
  3. Oh primo datinha da Dalila, a trocou por um fusquinha branco, oh dó!!!!!
    Muito boa a história

    ResponderExcluir