segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Uma tarde à beira da lagoa

Todos os dias ele levantava muito cedo. Preparava o café, passava manteiga no pão e levava para a minha mãe Ruth, ainda na cama. Se fosse alguma data especial, como aniversário dela, aniversário de casamento, dia das mães, a bandeja verde florida era acompanhada por uma rosa bem bonita. Somente depois disso o meu pai Fernando saia para as tarefas diárias.

Normalmente, ia para os canteiros de verduras para regá-las bem cedinho, antes mesmo de o sol nascer. O cuidado era ainda maior na época de inverno, pois as manhãs eram muito frias e ocorriam geadas com freqüência. A água retirada com regador do “corguinho” servia para amenizar o efeito dos gelos nas folhas das hortaliças. Na maioria das vezes, eu o acompanhava sempre bem agasalhado. Mesmo assim, os meus pés ficavam duros de frio e as mãos dormentes, mas eu fazia questão de ir com ele.

Após todos esses cuidados com a horta, ele abria o armazém, recebia os pães e varria todos os cômodos e toda a frente apedregulhada do prédio, até a beira do asfalto. Eu sempre tentava ajudá-lo, mas, sendo uma criança de três anos de idade, mais atrapalhava do que ajudava. Mesmo assim, o meu pai jamais ralhou comigo, pelo contrário, sempre procurava me incentivar e dizia que era importante participar de todas as atividades, sendo que, quando chegasse o momento de ir para a escola, esta deveria ser a maior prioridade.

Ele não teve muitos estudos. Fez apenas os quatro primeiros anos do grupo escolar, mas a vida o ensinou muito. Sua escrita era algo incomum, toda desenhada, parecia caligrafia gótica. Por conta de sua atividade no comércio, tinha uma facilidade incrível nas quatro operações e, na maioria das vezes, fazia as contas de cabeça, sem o uso de lápis ou caneta.
Não existia ali ainda calculadora e tudo era registrado num caderno de anotações.

Numa tarde de folga (lembrando que meu pai revezava os afazeres da venda com o meu tio Juvenal), estávamos à beira da lagoa, ao lado do campinho de futebol, pescando, e entre uma fisgada e outra, ele ia me ensinando a iscar o anzol, a tirar o peixe da linhada, a colocá-lo no samburá, sempre conversando comigo como se fossemos dois amigos adultos.

Eu ainda falava errado. Dizia “óio”. O meu pai, paciente, corrigia:

-Meu filho, não é “oio” ´, é óleo.

Eu dizia “aio”, ele ensinava:

-O certo é alho.

Eu falava “anzor”, ele corrigia:

-Anzol, meu filhote.

Aproveitando o momento, continuou a prosa:

- Você, meu filho, já é um mocinho e ainda chupa chupeta. Está na hora de largar, pois nenhum adulto usa e é muito feio esse bico na boca!

Eu pensei um minuto, retirei-a da boca, relutei por um instante e atirei no meio da lagoa. Disse com convicção:

- Nunca mais eu vou usar chupeta.

Papai fez uma cara de espanto e com uma voz firme disse:

- Meu garoto, o homem só tem uma palavra. Eu não vou lhe dar outra chupeta, pois não se volta atrás de uma palavra dada.

Aquela noite foi muito comprida para mim. Eu rolava na cama de um lado para outro, pedia aos anjinhos da guarda para me ajudarem, contava carneirinhos, a minha boca enchia d’água, queria sentir o gosto e o cheiro “delicioso” daquele látex, até que adormeci. Outras noites vieram, cada uma eu dormia um pouco melhor até que me acostumei ficar sem a bendita da chupeta. Depois de muito tempo, eu soube que o meu pai havia guardado uma de reserva no canto do armário para qualquer emergência, mas essa nunca precisou ser usada.

Por muito tempo ele continuou a levar o café da manhã e uma rosa para minha mãe, em dias especiais, na cama. Minha mãe generosamente retribuiu todo esse amor, cuidando dele dia e noite por quinze anos seguidos, pois por causa de um AVC, ficou imobilizado e sem a fala. Porém, de maneira quase incompreensível, continuou sempre feliz e sorridente, oferecendo um gesto de carinho para cada um de nós da família e de todos que o visitavam.

Esses ensinamentos e tantos outros ficaram comigo para o resto da vida. Sinto muito a sua ausência, sinto falta do seu bom humor, das suas brincadeiras, do seu afago; principalmente, da maneira de encarar a vida, dos seus valores. Embora simples, tinha uma conduta irrepreensível.

Acho que foi por conta disso que nenhuma de minhas quatro filhas (Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela) usaram chupetas.

6 comentários:

  1. O saldade do "velho" tio Fernando.
    Era verdade o estampar do sorriso no seu rosto.
    A atenção que ele dava a nos, qdo estavamos a fazer nada por ai.
    Quando leio suas lembranças, eu que já vivi muitas delas passa, um filme na cabeça:- a V endinha, e seus personagens que ali vinha, meu primeiro gole de cachaça, e ultimo, o coisa ruim.
    Se eu for contar tudo que lembro dessas historias, que você nos narra, vou ficar o dia todo aqui e assim mesmo não tera acabado.
    Primo Irmão.
    Você é demais
    Abraço

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  2. Uma pena não ter conhecido seu pai, João... mas tenho certeza q o fato de vcs todos serem pessoas legais e distintas vem, em parte, do "vô Nando", como tanto já ouvi...

    Grande abraço!

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  3. Nossa primo, uma pena eu não tr conhecido o Tio....sniff
    Mas de uma coisa tenho certeza ele o criou para ser este humano extraordinário que vc éh!!!

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  4. Obs: eu que removi o comentário do Paulo,rssss...Na verdade eu mandei e esse recadinho aqui e mandei, mas quem estava logado era ele!rsss...Então lá vai de novo!

    Oi pai!Dei uma sumidinha mas voltei,rs.
    Como já te disse via e-mail, digo de novo: vou imprimir essa história e colar no espelho, para ler sempre!
    A alegria do vô, mesmo depois das tempestividades da vida, era admirável. E quero sempre lembrar disso e praticar tb.
    A saudade é grande, mas guardo ele sempre no coração e nas semelhanças físicas,rsss, afinal tds dizem que me pareço mto com ele. Começando pelos olhos pequenos,;)
    Adorei!Beijos e saudades!

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  5. Flanelinha de charrete...kkkkkkkkkk...adorei isso! Quando vc vai lançar estas coletaneas em papel?

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  6. Oi João, adorei as suas histórias, li todas e me identifiquei com muitas delas. Parabéns eu não sabia de mais uma das suas virtudes,você escreve muito bem!!

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