quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O Circo do Beijinho

A primeira vez que assisti a um espetáculo circense foi no bairro de Luiz Carlos. Naquele tempo, o vilarejo era bem agitado. No meio da praça, havia um chafariz e, no seu entorno, várias casinhas. Existiam lá dois comércios, um na esquina da esquerda, do Sr. José Rego, e outro na esquina da direita, do meu tio João Moreira. No armazém do meu tio havia um telefone comunitário em formato de caixa de madeira, com um fone preto preso a um fio e uma espécie de microfone. O usuário girava uma manivela e chamava a telefonista que, por sua vez, atendia e completava a ligação. Havia também uma Estação da Central do Brasil. Trens com destino a São Paulo e ao Rio de Janeiro faziam paradas lá. Nos fundos da praça, aparecia a capela de São Lourenço cujas festas eram muito famosas.

Luiz Carlos também foi cenário para alguns filmes, o que movimentava a vila. Um dos mais famosos foi o “Gregório 38”, do diretor Alex Prado. Meu tio Augusto apareceu no papel de médico, com o seu inseparável violão quadrado, fabricado por ele mesmo. O meu primo Antônio Carlos era o menino jornaleiro e a prima Cida também fez figuração.

O circo do palhaço Beijinho ficava instalado em uma rua ao lado da casa do meu tio, que era continuação do prédio do armazém. Esse circo não tinha animais e praticamente toda a família do Beijinho compunha a trupe. Os espetáculos, embora simples, eram muito emocionantes, principalmente para nós, pois não tínhamos muitas opções de entretenimento. Além dos trapezistas, do engolidor de fogo, do mágico, do homem das agulhas no corpo, a atração máxima ficava por conta do próprio Beijinho, com suas palhaçadas e bordões, “esquê, esquê, esquê Bernarda!!!”. Eu nunca soube o significado disso. Lá, apresentavam também peças de teatro, como “O Menino da Porteira”, “A Aparição de Nossa Senhora”, “Marcelino Pão e Vinho”, entre outras. Artistas como Milionário e Zé Rico, Barnabé, Zilo e Zalo, Zelão Pininha e Verinha também faziam suas aparições. Estes artistas já tinham algum sucesso no rádio, o que melhorava o resultado da bilheteria.

Um picadeiro central, todo forrado de pó de serra, arquibancadas laterais de madeira e três mastros que serviam para aparar a lona formavam a estrutura do circo. No aparador central, que saía para cima da lona, ficavam umas bandeirinhas coloridas. Os próprios artistas tomavam conta da arrecadação do caixa, sempre instalado na entrada.

O circo peregrinava pelos arredores das cidades grandes e também por lugares mais afastados, como, por exemplo, na Freguesia da Escada, onde era muito comum encontrá-lo. Lá nós assistíamos a quase todos os espetáculos. Meu pai me levava junto com meu primo Jorge para lá a fim de termos subsídios para nosso cirquinho. Este era apresentado em minha casa, num galpão fechado, usado para guardar os arreios da égua, ferramentas, alguns pequenos maquinários e ração. Ali nós montávamos o nosso espetáculo. A minha irmã Kika ficava na bilheteria e, antes de liberar a entrada, distribuia os dinheirinhos de brincadeira. Eu fazia a apresentação (não esquecendo de dizer “Respeitável público...”) e tinha vários outros papéis. O Laudenir ficava com a incumbência de trazer novidades da “Praça da Alegria”, do saudoso Manuel da Nóbrega, pois naquela época só esse meu primo tinha televisão. Encenávamos, então, “A Velha Surda”, “O Bronco”, “O Menino de Itú”, “Catifunda”, entre outros. Todos achavam muita graça e pediam outras apresentações. O público era formado pela Tia Rosa, Tia Odete, minha mãe Ruth, Tia Ana e elas iam divulgando o nosso circo e chamando outras pessoas para as demais sessões.

Além desses, inspirados no circo do Beijinho e na Praça da Alegria, nós criávamos outros tipos inéditos como o “Chiquitão” (parodiando o Tio Chiquito), o “Padre Italiano”, o “Velho Caipira” e outros. Havia também o show de mágica e todos fingiam não perceber os truques. Os personagens femininos ficavam sempre para o meu primo Jorge, pois era o mais gordinho, o que favorecia que ressaltássemos suas pernas em vestidos curtos, emprestados de minha irmã. Uma peruca de linha de seda para bordar meias completava o seu figurino. Algumas cordas penduradas no telhado fomavam o trapézio.

Há pouco tempo, assistindo a uma entrevista em um programa de televisão, tive grata satisfação ao saber que o palhaço Beijinho, nosso ídolo e inspirador, está muito bem de saúde, morando no interior de São Paulo e, para maior e mais agradável surpresa, descobri que ele é o pai da dupla sertaneja de muito sucesso Edson & Hudson, hoje cantores solos.

Toninho e o grão de feijão mulatinho

A minha casa dificilmente ficava vazia. Embora meus pais tivessem somente um casal de filhos, os primos estavam sempre conosco. Os filhos da tia Helena e do tio Raul (Cida, Ana Maria, Pedro, João, Toninho e Jorge) perderam a mãe precocemente, e, por isso, viviam com a gente lá na roça. O mais novo, o Jorge, permanecia em casa durante todos os dias de suas férias escolares e ainda voltava para a sua casa reclamando. Os demais vinham nos visitar em alguns finais de semana, visto que, além da escola, tinham outras obrigações em Mogi das Cruzes, onde moravam.

O primo Laudenir, filho da tia Ana e do tio José Moreira, também adorava ficar conosco. A minha mãe era como se fosse a mãe dele, e a dele como se fosse minha. Sempre fizemos questão de nos apresentar como primos-irmãos.

Dormíamos e acordávamos com as galinhas para poder aproveitar bem o dia, e este parecia ser mais longo do que é hoje, pois dava para fazer inúmeras brincadeiras. Antes de dormir, programávamos todo o próximo dia. A primeira atividade, invariavelmente, era ir ao retiro de leite do Sr. Dorival Arruda segurando um copo americano com um pouquinho de açúcar no fundo para tomar o leite diretamente da vaca. Ali ficávamos até o Valdomiro, filho do Sr. Dorival, picar o capim, misturá-lo com o farelo, tratar das vacas, dos bezerros e dos novilhos. Às vezes, havia ainda uma seção de vacinação contra a aftosa, atividade a qual achávamos muito interessante acompanhar.

Voltávamos para casa e preparávamos as tralhas para pesca, pois no almoço a minha mãe sempre esperava um incremento na mistura. Naquele tempo, o Ribeirão do Salto ainda não tinha nenhuma poluição e o volume de água era muito maior que atualmente. Havia muitas variedades de peixes: lambari, cará, bagre, traíra, mandi e outros. Estes nós pescávamos com anzol e minhoca, porém outros, como o sagüiru e o cascudo, somente pegávamos no covo de bambu preparado pelo meu pai.

Após o almoço, íamos nadar no riacho, mas só depois da liberação de minha mãe, pois a comida precisaria “baixar” e sempre ouvíamos histórias de pessoas que tiveram problema nadando de barriga cheia. À tarde, brincávamos no pomar ou andávamos a cavalo. Para terminar o dia, jogávamos futebol no campinho ao lado de casa.

Foi em uma tarde de verão, quando o sol já estava se pondo, que eu e meu primo Toninho resolvemos ficar no pomar chupando mexerica. No final do quintal, havia uma eira com feijão mulatinho, que ali estava para secar, pois antes das vagens serem malhadas com a vara e os grãos ensacados, tinham de passar por esse processo de secagem. Foi então que o meu primo teve a idéia de fazer uma pegadinha comigo: colocar dois grãos em meu ouvido, um de cada lado, apertando-os entre os dedos polegar e indicador e soltando lá dentro da minha orelha. Como eu percebi a brincadeira, não deixei que a fizesse em mim, e ele fez uma demonstração nele mesmo de como seria essa idéia de me assustar. Ele virou a cabeça para que o feijão de um lado caísse. Nisso, na orelha que ficou p cima entrou o feijão. Neste momento, um dos grãos caiu no chão e o outro adentrou parcialmente no seu ouvido. Mesmo batendo e chacoalhando a cabeça, este não saia de jeito nenhum. Tive a iniciativa de buscar um grampo de cabelo da minha irmã Kika para tentar puxá-lo para fora. No entanto, em vez de puxar, empurrei. Foi aí que ele sumiu totalmente para dentro do canal auditivo. Nesse instante, a minha mãe apareceu e percebeu que alguma coisa não estava bem. Depois de alguma resistência, resolvi contar que o Toninho estava com um grão de feijão alojado dentro do ouvido.
Nessa época, em Guararema, só existia uma Santa Casa e mesmo assim os médicos não faziam plantão. Só iam uma ou duas vezes por semana e os casos mais graves eram transferidos para outros centros. Os partos eram feitos pela Dona Balbina e todos nós nascíamos em casa. Otorrinolaringologista, nem pensar.

A alternativa seria o Zé da Bala, dono da única farmácia, localizada na praça da matriz, na mesma calçada que a barbearia do Viriato. Era do tipo “faz tudo”, receitava e aplicava penicilina (e essa eu nunca esqueço, pois doía muito), tratava torcicolo, bronquite, tosse comprida, sinusite, sarampo, caxumba, bucho virado, nó nas tripas, constipação e aos domingos tratava das contusões dos atletas de futebol, pois atuava como massagista do time Guararema F.C.

Meu pai achou melhor colocar o Toninho na garupa da bicicleta e sair imediatamente pedalando rumo à farmácia do Zé da Bala, que ficava a uns cinco quilômetros de casa. Como era normal nesses apuros, ficamos lá sentados na calçada, eu, minha mãe e minha irmã, pensando no que poderia ter acontecido. Será que o feijão iria nascer dentro da cabeça? Teria que operar para retirar o grão? Abrir a cabeça? O meu pai ia pedalando e tentando manter o Toninho o mais calmo possível, mas também não estava tão seguro da situação, pois não sabia o que o Zé da Bala poderia recomendar nesse caso. Parecia uma situação complicada que poderia causar outros danos: dores de ouvido, infecção... E o que falar para o meu tio Raul, que era bem severo com os filhos?

Chegando à farmácia, meu pai contou em detalhes o que havia ocorrido. O Zé da Bala pensou um instante, perguntou quanto tempo havia ocorrido o fato e, na certeza de que o feijão ainda não havia inchado o suficiente para ficar instalado lá dentro, pegou uma seringa com água morna e uma tigela. Pediu ao Toninho que a segurasse na altura do ombro, logo abaixo da orelha, e jogou um jato bem forte lá dentro. O feijão saiu imediatamente, como um foguete, e caiu dentro da tigela. O meu primo, que até então estava apavorado, ficou aliviado.

Antes de voltar para casa, passaram no armazém do Doca e tomaram uma Tubaína. Retornaram rindo muito da situação. Imaginem só um pé de feijão germinando no tímpano do menino e nascendo de dentro da cabeça!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

As salsichas do Português

Nas décadas de 50 e 60, quando ainda não havia os supermercados com serviços de auto-atendimento, eram muito comuns os armazéns de secos e molhados.

Esses comércios eram chamados também de vendas e, tanto nos centros das cidades quanto nos bairros mais afastados, existia ao menos um desses estabelecimentos, os quais serviam tanto aos moradores do seu redor, quanto aos funcionários das fazendas, sítios vizinhos e viajantes de passagem por ali.

Meu pai Fernando tinha um desses em sociedade com o meu tio Juvenal e em torno de sua venda muitos acontecimentos ocorriam. Vários causos eram contados, muitas barganhas e negócios eram fechados. Também funcionava como ponto de encontro e fonte inesgotável de atualização dos fatos, pois os meios de comunicação ainda engatinhavam e em nossas casas somente os rádios de ondas médias nos colocavam em contato com o mundo. A vendinha chamava-se “Armazém de Secos e Molhados São José”. Foi construída pelo meu avô Antonio Moreira e , inicialmente , funcionava como botequim. Lá havia comidas e bebidas, com destaque para a pinga servida aos trabalhadores da estrada velha São Paulo - Rio. Ainda não existia a via Dutra e aquela era a única ligação para o Rio de Janeiro. Assim que meu tio José casou-se com a minha tia Ana, montou o armazém e nele ficou até o nascimento do seu filho Laerte. Meu pai, que já trabalhava com eles, assumiu as atividades desse comércio quando houve a possibilidade da família proprietária mudar para o centro da cidade.

Lá se vendia de tudo um pouco. Desde arroz, feijão, sal, banha de porco, salame, mortadela, ovo caipira e café para torrar, até utensílios, como baldes, bacias, panelas, machados, foices, caixas de fósforos, corda, fumo de rolo, tinta guarani, parafuso, lâmina de barbear, chapéu de palha, cola goma arábica, caderno brochura, papel de cartas, encordoamento de violão, pavio para lamparina, Kichute, Alpargatas, roda, cibalena, leite de colônia, pincel de barbear, canivete, pilhas Rayovac e Everedy, moringa de barro, bola de gude, pião, linha Corrente, tinta para tingir tecido Guarany, despertador West Clock, pedra de afiar, lampião de querosene, Neocid em pó. Enfim, os fregueses não necessitavam sair para as cidades circunvizinhas para fazerem as suas compras.

Tudo era a granel e precisava ser servido individualmente. O feijão, o arroz e o milho eram acondicionados em sacos de estopa e ficavam empilhados no depósito de grãos. Após serem colocados em caixas de madeiras com tampas, eram pesados, na presença do freguês, na balança Filizola , vermelha, e colocados em saquinhos de papel de um, dois, três ou cinco quilos, com uma concha de zinco. A balança ficava em cima do balcão , à vista do cliente, que sempre dava uma passadinha de olho a fim de conferir o peso da mercadoria. O dinheiro era cuidadosamente colocado em uma gaveta sob o balcão, com separações para os diversos valores.

O prédio tinha duas portas de entrada e dois depósitos, um de mercadorias ensacadas e outro de bebidas. Nas prateleiras, ficavam os litros de Pingas, Vermutes, a batida de limão e coco, a Groselha, o Conhaque, a Catuaba, o Fernete. Acima do balcão, havia uma tábua que ia de uma prateleira a outra. Nela eram cuidadosamente dependuradas as mortadelas e os salames. Num dos cantos da prateleira, ficavam expostas as lingüiças frescas e as calabresas. Também havia as caixas de produtos salgados, como bucho de porco e os peixes manjubas, savelia e mulato preto. A carne seca era colocada em uma mesinha nos fundos.

Os doces, como maria mole, paçoquinha, cocada, pé de moleque, gibi, teta de nega, abóbora, batata, suspiro, tinham um destaque num dos cantos do balcão, dentro de um móvel de madeira e vidro o qual parecia um armarinho. Este era fechado com duas portinhas de correr. Havia também um pote de barro com água fresquinha que normalmente servia os transeuntes. Era muito comum beberem também água com groselha. Devido ao armazenamento da água no recipiente de barro, a bebida ficava refrescante mesmo com a falta da geladeira. Esta era um acompanhamento perfeito para o sanduíche de pão com mortadela, fatiada à faca, ou para um lanche de sardinha em lata com cebolada picada. O pão chamava-se filão.

As demais bebidas ficavam no depósito da esquerda e as opções não eram muitas: guaraná e soda, da Antártica e Brahma, respectivamente, e cerveja também dessas marcas. Somente no final dos anos sessentas surgiram a coca-cola, a fanta laranja e a fanta uva. Não se consumia refrigerante como nos dias de hoje, pois, por falta de energia elétrica, não podiam ser gelados.

Num armazém, o freguês entregava a lista de compras ao vendedor, ou seja, não era ele mesmo que pegava as mercadorias na prateleira. Uma lista básica continha: arroz, feijão, açúcar cristal, sal, farinha de trigo, farinha de milho, banha, sabão em pedra, sabonete, pasta de dente e fósforos.

As atividades do dia a dia no armazém eram revezadas entre o meu pai e meu tio. Meu pai era o responsável no domingo; o meu tio, na segunda. Assim ia até o sábado, quando os dois trabalhavam juntos, devido ao grande movimento de clientes. Estes chegavam dos sítios vizinhos e até de outras localidades e o sábado era o dia no qual os fregueses da roça vinham comprar.

Toda quarta-feira, chegava por volta do meio-dia o caminhão do português Amadeu, trazendo a mortadela, o salame, o bacalhau, a lingüiça, os queijos de diversos tipos e os demais produtos desta linha. Eu, a minha irmã Kika, o meu primo Antônio Luiz e a minha prima Maria Inez (os meninos com sete e as meninas com quatro anos) ficávamos atentos quando da chegada do Português, pois sempre ele ia até o baú do caminhão, pegava quatro salsichas e distribuía uma para cada criança. Agradecíamos e íamos todos felizes para as nossas casas nos deliciando com aquelas que, na maioria das vezes, se tornavam nossa mistura naquele dia.

Foi numa dessas quartas-feiras, enquanto brincávamos na casa do tio Juvenal, do outro lado do rio, que o episódio que irei relatar ocorreu. Era dia de meu tio cuidar das plantações e do meu pai ficar no comando do armazém. Para a felicidade da criançada, o português encostou aquele velho caminhão em frente à venda. Eu e minha irmã saímos em disparada, pois, se o português fosse embora, adeus salsichas. Para irmos de lá para perto do caminhão tinha uma passagem de madeira sob o rio, logo à frente a estradinha e o ao lado ficava o armazém. O meu primo pediu para esperá-lo e saiu também atrás da gente. O meu tio Juvenal, sempre muito severo na educação dos filhos, ordenou:

- Pare imediatamente e volte para casa!

Mas o meu primo nem deu ouvidos e saiu correndo em direção ao Português e seu caminhão. O meu tio, percebendo que não fora atendido, saiu gritando:

- Eu te pego, seu moleque desobediente!

O Antônio Luiz correu e correu, mas estava na iminência de ser alcançado. Tentando fugir da surra e ao mesmo tempo indo em busca da tão desejada salsicha, pulou dentro do ribeirão. Naquele momento, ele nem se lembrou do fato de que não sabia nadar, o desespero para alcançar a salsicha e não ser alcançado por seu pai era muito grande! Tio Juvenal se jogou na água de roupa, de bota de borracha nós pés e de chapéu de palha na cabeça e o apanhou, nadando com ele até a outra margem.

Ali, meu primo ainda atordoado apanhou pela primeira vez por ter desobedecido, saído sem o consentimento de seu pai. Quando retornou para a casa, puxado pelo braço, a surra pelo salto no rio foi ainda mais elaborada, pois lá havia sempre pronta uma varinha de marmelo que esperava atrás da porta para esses momentos de desobediência plena. Ainda bem que a lei das palmadinhas ainda não existia, senão...

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Meu avô, meu mestre!

Com olhar calmo, sempre mirando o horizonte, pausadamente comentava: como a natureza é bela e sábia! Nascido por volta de 1890, tinha idéias revolucionárias e extremamente avançadas para o seu tempo. Preocupava-se com as nascentes e com a poluição do solo. Quando ainda ninguém falava sobre reciclagem, o meu avô materno Antonio Moreira já separava os vidros, os alumínios, os papelões, não atirava na terra nada que pudesse contaminá-la e fazia questão de explicar para todos nós que o solo tinha que ser muito bem cuidado, senão seria impossível as plantações vingarem. Os terrenos eram por ele muito bem cuidados para que não houvesse erosões. Também, dizia que o bem mais preciso do planeta seria um dia a água potável. Não tinha nenhuma escolaridade formal, mal e mal escrevia o seu nome e soletrava apenas algumas palavras, mas tinha uma vivência e uma inteligência raras. Na sua humildade de homem sem formação acadêmica, era um sábio. Era severo na educação dos filhos e, por conseguinte, dos netos. Tinha uma fé inabalável e fazia questão de iniciar a todos no temor a Deus. Adorava tocar viola e assistir aos jogos na beira do campo de futebol. Para ele, compadre era parente e amizade, um tesouro.
De sorriso contido, tinha um semblante sério, parecendo uma pessoa brava, mas no íntimo era muito amável e divertido.
Já havia nascido sete dos seus oitos filhos, Deoclésia, João, Helena, José, Augusto, Juvenal e Bento, quando adquiriu um sítio á beira da estradinha de terra que era a única ligação rodoviária entre São Paulo e Rio de Janeiro. Foi barganhado por um casinha, cuja propriedade passou a ser do Sr. Adelino Lima, com localização próxima às margens do rio Paraíba, em Guararema. Naquela época, minha tão querida cidade era detentora de meia dúzia de ruas, ainda sem pavimentação, e de população bem pequena. No sítio que adquiriu, construiu a casa sede e mudou-se para lá, onde nasceu a sua filha mais nova, minha mãe Ruth, que mora nesta mesma casa até os dias de hoje.
De todas as suas dezenas de netos, eu tive o privilégio de ter convivido mais tempo ao seu lado, pois, além de ter morado até os dez anos bem pertinho de sua casa, começamos a morar juntos quando mudamos para sua casa do sítio no momento em que minha avó Gasparina adoeceu (por conta de um AVC). Com a mudança, minha mãe pôde cuidar dela até os seus últimos dias.
Quando saíamos para caminhar entre os arvoredos, a explicação sobre as plantas era muito elaborada. Para que servia um guatambu, o que era uma árvore mamica de porca, um jacaré, uma pata de vaca, um ingazeiro, uma aroeira, uma embaúba, uma figueira, um jacarandá, uma quaresmeira, Ipês de todas as cores e tantos outros esclarecimentos estavam presentes nas conversas. Também, explicava detalhadamente como encabar uma foice, uma enxada, um machado, embora soubesse perfeitamente que talvez nunca fôssemos utilizar esses utensílios para a nossa profissão.
Exímio carpinteiro, tinha muitas habilidades manuais. Era muito organizado e seu lema era: “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. As suas ferramentas eram rigorosamente guardadas em suas devidas prateleiras e todas permaneciam minuciosamente afiadas e bem cuidadas. Mantemos até hoje muitas de suas peças no sítio, confeccionadas por ele próprio, como roda de ralar mandioca, fuso para prensa canga, canzis e moenda de cana de açúcar.
Os passeios a cavalo eram uma verdadeira aula, pois ele me ensinava desde como preparar a montaria até a maneira correta de conduzir o animal. Nos passeios, era sempre elegante na vestimenta: usava um chapéu de feltro marrom da marca Cury, camisa xadrez, calça cáqui e botinas de couro. Cabelo sempre bem penteado, barba feita e bigode aparado. Um relógio de bolso e óculos para leitura compunha o seu visual.
Quando nós ainda morávamos na casa do armazém, do outro lado da estrada, pelo menos uma vez na semana o meu avô e a minha avó iam nos visitar. Era a maior alegria! De tantas e tantas passagens, a seguinte me marcou profundamente. Eu tinha por volta de seis anos e minha irmã Kika, três. Numa noite, ao ouvir o barulho deles chegando, fiquei tão contente que joguei uma girafinha, meu primeiro e único brinquedo, para o alto. Ela chocou-se com o suporte que aparava as panelas, localizado em cima do fogão à lenha, quebrando-o e fazendo com que todos os utensílios caíssem ao chão. Uma delas, a mais cobiçada de todas, a de pressão, teve seu cabo quebrado. Lembre-se de que, naquele tempo, uma panela de pressão era a maior raridade.
Nessas visitas, ele sentava-se numa tripeça de madeira, bem baixinha, e ali ficávamos juntos brincando de cavalinho com meu brinquedo. Montava os arreios na girafinha e explicava, detalhe por detalhe, como encilhar um animal, fazer arreios, preparar o couro e trançar um laço. Era uma verdadeira aula. Eu tinha a maior curiosidade de aprender sobre tudo, característica bem comum às crianças, principalmente numa época em que a comunicação era muito restrita aos contatos e às relações interpessoais. Até hoje guardo com muito zelo esse meu primeiro brinquedo. Minhas filhas Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela brincaram com a girafinha e agora o meu neto Lorenzo, de três anos, tem por ela o maior carinho. Aliás, ele acha que é dono dela, mas sempre na hora do fim da brincadeira ele a guarda no lugar especial a ela reservado em minha casa e diz que ele não leva embora porque eu tomo conta dela.
A girafinha foi o meu primeiro brinquedo e, sem dúvida, é o objeto que mais me faz lembrar do meu querido avô, aquele que foi e será meu eterno mestre.
Muitos da sua descendência tem um pouco dele, os filhos, os netos, os bisnetos e tataranetos, o que nos faz uma família muito unida e diferenciada.
Convivi intensamente com ele até final, nos anos 70, e estive ao seu lado nos seus últimos instantes de vida. Quantas saudades!

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Clássico é classico e vice versa

Na sexta-feira, iniciávamos todos os preparativos para a partida de futebol do domingo à tarde. A bola de couro escuro ficava em baixo do balcão do armazém de meu pai e era cuidadosamente enchida com uma bomba, que também servia para os pneus das bicicletas e da charrete. Logo após, passava-se bastante sebo de boi em seu entorno para que melhorasse a sua impermeabilidade, uma vez que ela sempre caia ou no riozinho, que ficava de um lado, ou na lagoa, que se encontrava do outro. O sebo também tinha a finalidade de melhorar a durabilidade do couro, já que para comprar uma bola nova era necessário muito esforço e sucessivas vaquinhas.



O sábado era reservado para as preparações mais demoradas, como aparar a grama, arrancar as touceiras e as inevitáveis guanchimbas, muito mais difíceis de se tirar, devido ao fato destas não poderem ser apenas aparadas, pois deixavam talos pontiagudos que poderiam machucar os nossos pés.



Sempre jogávamos as peladas do meio da semana descalços e somente no jogo de domingo é que calçávamos as chuteiras. Era impossível usá-las com muita freqüência, pois poderíamos estragá-las rapidamente e a compra de uma nova era muito difícil. Estas chuteiras se apresentavam bastante diferentes das atuais, pois eram fabricadas com couro muito duro e tinham três carreiras de travas pregadas nas solas. Quando se soltava alguma delas, era necessário repregá-las utilizando um pé de ferro. O final da preparação era a demarcação. Utilizando um carrinho de mão, íamos espalhando caulim e assim se formavam as linhas brancas do campo. Primeiro fazíamos linhas laterais, depois as do meio do campo e do circulo central, em seguida as das grandes e pequenas áreas e, por fim, a marca do pênalti. Para o domingo, restava apenas a colocação das redes em suas respectivas traves.



Recordo-me de um jogo muito especial. Um clássico da região: o EC 77 x Marrons FC. Partidas entre estes dois times sempre vinham cercadas de muita expectativa e ansiedade. Não havia favorito.



O nosso time, o EC 77, vinha de várias vitórias seguidas e tinha no elenco o melhor meia esquerda daquelas redondezas: o meu tio Juvenal. Ele tinha muita facilidade no drible, além de visão de jogo bastante apurada. Chutava bem forte, tanto com o pé esquerdo quanto com o direito. Em todas as partidas, fazia vários gols e dependíamos muito do seu desempenho para ganharmos os jogos. Como ele trabalhava em sistema de revezamento de horários, na fábrica de papel Simão, era impossível estar conosco todos os domingos. Mais um motivo para esta ser uma partida muito importante é que, naquele dia, ele trabalharia até as 14h00 e chegaria a tempo de entrar em campo para o confronto.



Eu e meu pai Fernando tratamos de fechar o armazém a tempo de almoçar e ir para a beira do campo a fim de preparar os últimos detalhes. O jogo de camisas listradas já estava separado e os calções azuis já tinham sido cuidadosamente colocados na mala.



Aos poucos, foram chegando os atletas. O Luizinho goleiro e o Tião Rafael vieram de bicicleta; o Tião Arruda, seu irmão Valdomiro e o Valter Moreira estavam a pé, pois moravam bem pertinho; o Antônio Ferreira, como sempre, de charrete; o tio José Moreira apareceu com sua Brasília vermelha, trazendo os demais integrantes da equipe: o Laerte e o Laudenir. Era só esperar a chegada do craque, colocar os uniformes e começar o jogo, visto que o time adversário já estava batendo bola há algum tempo, no lado do campo que formava uma grande sombra sob a árvore das cigarras.



Por volta das 15h00, o ônibus que trazia os funcionários da fábrica parou ao lado da estrada e dele só desceu o João Alves. Como eventualmente o meu tio ficava um pouco mais para cobrir alguma falta do seu sucessor no turno de trabalho, resolvemos que iríamos iniciar a partida sem a sua presença. O meu tio José Moreira, que também acumulava a posição de beque central e técnico, chamou-me em um canto e, pela primeira vez, recebi a camisa 10 do EC 77! Aquele jogo, como não poderia ser diferente, foi muito pegado e o resultado extremamente apertado. O Marrons FC fez um a zero no primeiro tempo e somente aos quarenta e dois da segunda etapa, conseguimos empatar. Após um cruzamento da esquerda, do meu primo Laudenir, matei a bola com alguma dificuldade no joelho, e, de pé direito, chutei no ângulo...

GOOOOOOL!! Empatamos, assim, a partida!



Terminado o jogo, recebemos a notícia de que o meu tio Juvenal havia se acidentado numa manobra com a empilhadeira que trabalhava. Foi hospitalizado e durante meses ficou o medo de que ele nem ao menos pudesse caminhar. Os médicos não tinham nenhuma expectativa em relação a sua recuperação. Porém, com muita força de vontade, muita fisioterapia e devido ao fato de ser um excelente atleta, não só voltou a andar como também desfilou a sua categoria nos gramados de Guararema pelos trinta anos seguintes, pois até os setenta anos de idade era ainda um craque na arte de jogar futebol!



A partir daí, herdei de meu tio a mais famosa camisa de nosso time. A primeira camisa 10 a gente jamais esquece!

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Balão no céu, perigo na terra


Era mês de junho. A noite havia chegado há pouco e as primeiras estrelas apareciam cintilantes no céu. A estrada de asfalto, quase sem nenhum acostamento, obrigava o meu pai a ir se equilibrando sobre a bicicleta, tomando todo o cuidado para não esbarrar no meu tio Bento, que pedalava a frente. Era como um bailado: quando vinha algum carro, no mesmo sentido, era necessário atravessar a estrada e seguir como se estivesse na contramão. Quando vinha no sentido oposto, podia-se continuar o trajeto no mesmo lado, tomando-se o devido cuidado para não cair no desnível entre a beirada do asfalto e o acostamento de terra batida. Na passagem dos carros, toda extensão ficava iluminada. Os faróis ofuscavam nossa visão. Alguns segundos se passavam antes dela voltar a se acostumar com aquele caminho que parecia um breu de tão escuro.



Nas árvores, às margens da pista, alguns pássaros revoavam de uma moita para outra e teimavam em encontrar um local mais adequado para a passagem daquela noite fria de inverno.



Eu ia sentado de lado no quadro da bicicleta Hubber, vermelha, de cinco marchas, que meu pai havia adquirido há pouco tempo em uma negociação com um viajante. Ia feliz da vida, pois era muito gratificante sair com os adultos para passear na Freguesia da Escada, um vilarejo bucólico distante de casa uns dois quilômetros. A minha diversão era ir controlando a luz. Funcionava com dois focos, alto e baixo e este sistema era mudado em um pininho no alto do farol, logo a frente do guidão. Um dínamo acoplado aos raios da roda fornecia a energia necessária. Quanto mais rápidas as pedaladas, mais intensa era a luminosidade.



Numa das manobras entre a passagem de um carro e outro, o meu tio avistou, bem no alto, um balão (desses que soltam em festas juninas), brilhante naquela imensidão escura. Comentou efusivamente com meu pai, que, ao olhar repentinamente para aquele lado, tocou com a roda dianteira de nossa bicicleta, na roda traseira da que ia à frente. Isto ocasionou um tombo tão rápido que nem deu  tempo para alguma reação, muito menos qualquer tipo de proteção. Bati com a cabeça naquele asfalto duro. Senti uma dor intensa e uma ligeira tontura.



Nesse instante, meu pai percebeu que havia um corte profundo na minha nuca. Lembro-me nitidamente da sua preocupação em estancar o sangue, que insistia em escorrer pela minha cabeça.



Quando chegamos em casa, o lenço azul que meu pai sempre carregava no bolso traseiro estava todo vermelho. No machucado, o sangue já havia coagulado. Minha mãe correu para esquentar uma bacia de água, no fogão a lenha, a fim de limpar o meu cabelo, pescoço e ombros. Carrego até hoje essa cicatriz e toda vez que vejo uma noite de inverno, com estrelas cintilando no céu, não deixo de lembrar que foi naquela noite que, felizes da vida, pudemos beber Guaraná sem ser no almoço de domingo, pois precisávamos esquecer o susto pelo qual havíamos passado.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A volta pela estradinha do coronel

As tardes de verão, lá na roça, eram abafadas e não raramente terminavam com uma trovoada muito forte. Isto nos deixava muito alegres, pois o rio enchia e a água ficava barrenta, avermelhada, o que facilitava a pescaria, especialmente de Bagres, que era preparado com muito carinho pela minha mãe, na refeição da noite. O bagre era um peixe muito apropriado para se comer no jantar, visto que a luz da lamparina não clareava o suficiente toda a mesa e este, além da carne muito saborosa, tinha pouquíssimos espinhos.

Numa dessas tardes, eu e meu primo Antonio Luiz voltávamos da Escola Rural da Freguesia da Escada. As bicicletas eram nossas aliadas inseparáveis, pois aqueles dois quilômetros que separavam a nossa casa da escola, eram quase impossível serem transpostos á pé, principalmente por duas crianças de apenas 8 anos de idade. A minha era azul, aro 26, com um selim, coberto por uma capa muito colorida que meu pai acabara de comprar no Pedro Bicicleteiro, lá no centro da cidade. No guidão, duas manoplas também novas, o que valorizava e muito o seu visual. A do meu primo era preta, aro 28, um pouquinho mais alta. O detalhe é que as duas tinham o quadro próprio para mulheres, pois todas as crianças tinham que aprender a andar nelas, tanto os meninos quanto as meninas e assim eram compartilhadas por todos nós. Era impossível cada um ter a sua.

Íamos pedalando e comentando o fato de que nossa professora Dona Kasuko Honda havia exagerado nas tarefas daquele dia, o que ia comprometer a nossa próxima manhã, pois não daria para brincar o quanto a gente gostaria.

Foi daí que começamos a desejar que aquela chuva, a qual estava se formava no horizonte, caísse rapidamente e assim iríamos iniciar uma brincadeira diferente, ali mesmo.

Não tínhamos ainda tomado banho de chuva andando de bicicleta e a expectativa era de que seria o máximo.

Os nossos cadernos eram carregados em uma bolsinha de lona, colocada na garupa, em uma espécie de prendedor com molas. Os lápis, borrachas, caneta tinteiro, um vidro de tinta Pilot, cor preta, Gillette para apontar os lápis , caixinha com seis unidades de lápis de cor, tudo devidamente ajeitado no estojo de madeira. Na tampa havia um desenho de um lago e um barquinho à vela desenhado. Na lancheira, algumas migalhas do pão e o cheiro da mortadela que minha mãe havia colocado para a hora do recreio. O percurso era feito pela estradinha de terra do Coronel, ladeada de capituvas dos dois lados, com menos de dois metros de largura, cheias de costelas de vaca, porém segura no sentido de que nenhum carro por ali passava. O único inconveniente era a pouca ou quase nenhuma conservação. De trechos em trechos descíamos e empurrávamos nossas bicicletas, tomando os devidos cuidados para não ficarmos atolados na lama. Hoje esse trecho já não existe mais, pois foi encampado pelos latifundiários.

Quando já tínhamos percorrido quase a metade do trajeto, bem perto da Olaria dos Siqueiras, chegou a tempestade. Veio de uma forma que nunca havia presenciado. Tudo ficou muito escuro, parecia noite. Poucos minutos depois de iniciada a chuva, os raios e trovões surgiram, com muito barulho, clareando tudo ao redor a cada estrondo. O fenônemo, que deveria gerar admiração e brincadeira, agora era um misto de muito medo e insegurança. Quando a água batia em nossos rostos, doía como agulhada e a respiração ficava muito prejudicada. Não era possível pedalar mais e a única forma de continuar era sair empurrando estrada à fora. Porém, nem assim era possível sair do lugar. Mais ainda para meu primo, que já tinha dificuldade em enxergar normalmente.

Foi então que largamos tudo, retiramos as sacolinhas da garupa e saímos em disparada em direção à casa do Tio Juvenal, completamente ensopados e exaustos. Quando lá chegamos, a tia Odete imediatamente preparou uma troca de roupa sequinha e um cafezinho bem quentinho na tentativa de que parássemos de bater os dentes de tanto frio.

Lá em casa, a minha mãe estava muito preocupada, pois já era hora de estar lá, isto é, se não ficássemos fazendo hora na espera da chuva. Mandou que o meu pai saísse, com dois guarda-chuvas, um feminino e outro preto, bem grande, daqueles que tinha no cabo um elefantinho para que, assim que fossem encontrados, coubéssemos todos ali.

Fechou o armazém, saiu na tempestade e foi rapidamente ao nosso encalço. Porém, após a descida do taquaral, logo após a casa do tio Bento, encontrou os óculos do meu primo jogados na beira de uma moita de capim gordura. Mais à frente, dois pares de sandálias havaianas atoladas no barro e, adiante, as duas bicicletas largadas no meio de um lamaçal. A única alternativa, naquele momento, foi retornar e tentar descobrir, pelas nossas pegadas, onde estaríamos naquela hora. Os passos levavam por de baixo de uma cerca de arame farpado, nas cercanias da casa do meu primo. Assim que lá chegou, estávamos os dois, sentados perto do fogão, que foi aceso para que pudéssemos aquecer as mãos e assim pararmos de tremer o corpo inteiro. As sacolinhas em um canto mostravam os cadernos todos borrados, pois a tinta já havia escorrido e estava espalhada pelas páginas. Só a páginas de aritmética que eram preenchidas à lápis talvez pudessem ser recuperadas.

Depois de um xingo bem dado e um gole de café, saiu para resgatar todos os pertences largados ao longo da estradinha.

Certamente, é por isso que até hoje evito temporais.