sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Meu avô, meu mestre!

Com olhar calmo, sempre mirando o horizonte, pausadamente comentava: como a natureza é bela e sábia! Nascido por volta de 1890, tinha idéias revolucionárias e extremamente avançadas para o seu tempo. Preocupava-se com as nascentes e com a poluição do solo. Quando ainda ninguém falava sobre reciclagem, o meu avô materno Antonio Moreira já separava os vidros, os alumínios, os papelões, não atirava na terra nada que pudesse contaminá-la e fazia questão de explicar para todos nós que o solo tinha que ser muito bem cuidado, senão seria impossível as plantações vingarem. Os terrenos eram por ele muito bem cuidados para que não houvesse erosões. Também, dizia que o bem mais preciso do planeta seria um dia a água potável. Não tinha nenhuma escolaridade formal, mal e mal escrevia o seu nome e soletrava apenas algumas palavras, mas tinha uma vivência e uma inteligência raras. Na sua humildade de homem sem formação acadêmica, era um sábio. Era severo na educação dos filhos e, por conseguinte, dos netos. Tinha uma fé inabalável e fazia questão de iniciar a todos no temor a Deus. Adorava tocar viola e assistir aos jogos na beira do campo de futebol. Para ele, compadre era parente e amizade, um tesouro.
De sorriso contido, tinha um semblante sério, parecendo uma pessoa brava, mas no íntimo era muito amável e divertido.
Já havia nascido sete dos seus oitos filhos, Deoclésia, João, Helena, José, Augusto, Juvenal e Bento, quando adquiriu um sítio á beira da estradinha de terra que era a única ligação rodoviária entre São Paulo e Rio de Janeiro. Foi barganhado por um casinha, cuja propriedade passou a ser do Sr. Adelino Lima, com localização próxima às margens do rio Paraíba, em Guararema. Naquela época, minha tão querida cidade era detentora de meia dúzia de ruas, ainda sem pavimentação, e de população bem pequena. No sítio que adquiriu, construiu a casa sede e mudou-se para lá, onde nasceu a sua filha mais nova, minha mãe Ruth, que mora nesta mesma casa até os dias de hoje.
De todas as suas dezenas de netos, eu tive o privilégio de ter convivido mais tempo ao seu lado, pois, além de ter morado até os dez anos bem pertinho de sua casa, começamos a morar juntos quando mudamos para sua casa do sítio no momento em que minha avó Gasparina adoeceu (por conta de um AVC). Com a mudança, minha mãe pôde cuidar dela até os seus últimos dias.
Quando saíamos para caminhar entre os arvoredos, a explicação sobre as plantas era muito elaborada. Para que servia um guatambu, o que era uma árvore mamica de porca, um jacaré, uma pata de vaca, um ingazeiro, uma aroeira, uma embaúba, uma figueira, um jacarandá, uma quaresmeira, Ipês de todas as cores e tantos outros esclarecimentos estavam presentes nas conversas. Também, explicava detalhadamente como encabar uma foice, uma enxada, um machado, embora soubesse perfeitamente que talvez nunca fôssemos utilizar esses utensílios para a nossa profissão.
Exímio carpinteiro, tinha muitas habilidades manuais. Era muito organizado e seu lema era: “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. As suas ferramentas eram rigorosamente guardadas em suas devidas prateleiras e todas permaneciam minuciosamente afiadas e bem cuidadas. Mantemos até hoje muitas de suas peças no sítio, confeccionadas por ele próprio, como roda de ralar mandioca, fuso para prensa canga, canzis e moenda de cana de açúcar.
Os passeios a cavalo eram uma verdadeira aula, pois ele me ensinava desde como preparar a montaria até a maneira correta de conduzir o animal. Nos passeios, era sempre elegante na vestimenta: usava um chapéu de feltro marrom da marca Cury, camisa xadrez, calça cáqui e botinas de couro. Cabelo sempre bem penteado, barba feita e bigode aparado. Um relógio de bolso e óculos para leitura compunha o seu visual.
Quando nós ainda morávamos na casa do armazém, do outro lado da estrada, pelo menos uma vez na semana o meu avô e a minha avó iam nos visitar. Era a maior alegria! De tantas e tantas passagens, a seguinte me marcou profundamente. Eu tinha por volta de seis anos e minha irmã Kika, três. Numa noite, ao ouvir o barulho deles chegando, fiquei tão contente que joguei uma girafinha, meu primeiro e único brinquedo, para o alto. Ela chocou-se com o suporte que aparava as panelas, localizado em cima do fogão à lenha, quebrando-o e fazendo com que todos os utensílios caíssem ao chão. Uma delas, a mais cobiçada de todas, a de pressão, teve seu cabo quebrado. Lembre-se de que, naquele tempo, uma panela de pressão era a maior raridade.
Nessas visitas, ele sentava-se numa tripeça de madeira, bem baixinha, e ali ficávamos juntos brincando de cavalinho com meu brinquedo. Montava os arreios na girafinha e explicava, detalhe por detalhe, como encilhar um animal, fazer arreios, preparar o couro e trançar um laço. Era uma verdadeira aula. Eu tinha a maior curiosidade de aprender sobre tudo, característica bem comum às crianças, principalmente numa época em que a comunicação era muito restrita aos contatos e às relações interpessoais. Até hoje guardo com muito zelo esse meu primeiro brinquedo. Minhas filhas Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela brincaram com a girafinha e agora o meu neto Lorenzo, de três anos, tem por ela o maior carinho. Aliás, ele acha que é dono dela, mas sempre na hora do fim da brincadeira ele a guarda no lugar especial a ela reservado em minha casa e diz que ele não leva embora porque eu tomo conta dela.
A girafinha foi o meu primeiro brinquedo e, sem dúvida, é o objeto que mais me faz lembrar do meu querido avô, aquele que foi e será meu eterno mestre.
Muitos da sua descendência tem um pouco dele, os filhos, os netos, os bisnetos e tataranetos, o que nos faz uma família muito unida e diferenciada.
Convivi intensamente com ele até final, nos anos 70, e estive ao seu lado nos seus últimos instantes de vida. Quantas saudades!

7 comentários:

  1. Linda história pai!!!Realmente a girafinha está na memória de todos nós...Pena não ter conhecido o vô Moreira, mas sei que muito do que somos veio do que ele ensinou aos seus filhos e netos.Beijinhos emocionados!

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  2. É maravilhoso poder ouvir as lindas histórias de nossa família, de nossa raiz!!!
    Essa em particular, tem um toque especial, conta a história do homem que deu início a essa família linda. Um homem especial, forte, mas acima de tudo sábio.
    Uma das maiores dádivas de uma pessoa é poder conviver com os avós e aprender com eles um pouco de cada coisa, mesmo que seja somente coisas erradas...rsrs.
    O meu maior orgulho é poder ter convivido com o meu avô Fernando e agora o meu filho poder conviver com o avô dele também, que adora ensinar-lhe coisas (jogar bola principalmente..rsrs).
    Sem contar a girafinha né!!!...ah essa girafinha...
    Beijos

    Fernanda

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  3. Antes de ler esse texto jamais tinha sequer ouvido falar do seu Moreira. Com a indicação da Ju, minha amiga e filha do João, abri o blog e li uma história belíssima que me fez sentir saudades da minha avó Elina (na realidade mãe da minha madrasta, minha mãe de criação).

    Com dona Elina aprendi como se faz tapioca (biju como ela chamava), como se pinta um cabelo (eu pintei o dela muitas vezes mesmo antes de aprender como se fazia certo) e como a amar de forma serena. Mesmo no silêncios dos seus últimos dias - ela perfeu a fala nos dois últimos meses de vida - ela transmitia muita sabedoria e sensatez. Sinto falta daquela senhoria de vestidos de chita ou algodão que foi embora há sete anos.
    São pessoas como seu Moreira e dona Elina, que trazem uma sabedoria que escola nenhuma poderia ensina-los. Conhecimentos que perderam espaço para diplomas nas paredes.
    O texto me inspirou de tal forma, que acabei fazendo de um comentário, outro. Parabéns pela iniciativa de não deixar suas memórias se perderem, João.

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  4. Puxa primo q boa sorte a sua em ter vevenciado momentos unicos com se querido Avô, são experiências que poucos podem desfrutar!!!!!!!!
    Parabéns diretamente não mais pacata de cidade Guararema..rs
    Adriana e Laudenir

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  5. Parabens amigo Joao por uma vida tao cheia de alegrias e ensinamentos;ensinamentos esses que fizeram de voce a pessoa que hoje é! obrigado pela sua amizade! grande abç!
    do amigo GIBA.

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  6. Muito legal essa história João! Com certeza esses ensinamentos e sabedoria estão presentes na sua família e continuarão vivos...realmente, a iniciativa é mt boa, não deixe suas memórias se perderem, afinal não somos todos nós que nos conseguimos lembrar tão bem do passado!

    Grande abraço...

    Eric

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  7. Muito legal mesmo!Não sabia da história do meu avô, sabia que ele era da Freguesia, km 77, muito bom. Enquanto lia eu imaginava a minha infância com meu avô também, eu era a neta mais velha e gostava de ir trabalhar com ele,na garupa da bicicleta. Foi assim, como voce, que eu aprendi muita coisa sobre a natureza, com meu avô. Junte suas crônicas e edite um livro, a gente lê e fica com vontade de ler mais...







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