segunda-feira, 23 de agosto de 2010

As salsichas do Português

Nas décadas de 50 e 60, quando ainda não havia os supermercados com serviços de auto-atendimento, eram muito comuns os armazéns de secos e molhados.

Esses comércios eram chamados também de vendas e, tanto nos centros das cidades quanto nos bairros mais afastados, existia ao menos um desses estabelecimentos, os quais serviam tanto aos moradores do seu redor, quanto aos funcionários das fazendas, sítios vizinhos e viajantes de passagem por ali.

Meu pai Fernando tinha um desses em sociedade com o meu tio Juvenal e em torno de sua venda muitos acontecimentos ocorriam. Vários causos eram contados, muitas barganhas e negócios eram fechados. Também funcionava como ponto de encontro e fonte inesgotável de atualização dos fatos, pois os meios de comunicação ainda engatinhavam e em nossas casas somente os rádios de ondas médias nos colocavam em contato com o mundo. A vendinha chamava-se “Armazém de Secos e Molhados São José”. Foi construída pelo meu avô Antonio Moreira e , inicialmente , funcionava como botequim. Lá havia comidas e bebidas, com destaque para a pinga servida aos trabalhadores da estrada velha São Paulo - Rio. Ainda não existia a via Dutra e aquela era a única ligação para o Rio de Janeiro. Assim que meu tio José casou-se com a minha tia Ana, montou o armazém e nele ficou até o nascimento do seu filho Laerte. Meu pai, que já trabalhava com eles, assumiu as atividades desse comércio quando houve a possibilidade da família proprietária mudar para o centro da cidade.

Lá se vendia de tudo um pouco. Desde arroz, feijão, sal, banha de porco, salame, mortadela, ovo caipira e café para torrar, até utensílios, como baldes, bacias, panelas, machados, foices, caixas de fósforos, corda, fumo de rolo, tinta guarani, parafuso, lâmina de barbear, chapéu de palha, cola goma arábica, caderno brochura, papel de cartas, encordoamento de violão, pavio para lamparina, Kichute, Alpargatas, roda, cibalena, leite de colônia, pincel de barbear, canivete, pilhas Rayovac e Everedy, moringa de barro, bola de gude, pião, linha Corrente, tinta para tingir tecido Guarany, despertador West Clock, pedra de afiar, lampião de querosene, Neocid em pó. Enfim, os fregueses não necessitavam sair para as cidades circunvizinhas para fazerem as suas compras.

Tudo era a granel e precisava ser servido individualmente. O feijão, o arroz e o milho eram acondicionados em sacos de estopa e ficavam empilhados no depósito de grãos. Após serem colocados em caixas de madeiras com tampas, eram pesados, na presença do freguês, na balança Filizola , vermelha, e colocados em saquinhos de papel de um, dois, três ou cinco quilos, com uma concha de zinco. A balança ficava em cima do balcão , à vista do cliente, que sempre dava uma passadinha de olho a fim de conferir o peso da mercadoria. O dinheiro era cuidadosamente colocado em uma gaveta sob o balcão, com separações para os diversos valores.

O prédio tinha duas portas de entrada e dois depósitos, um de mercadorias ensacadas e outro de bebidas. Nas prateleiras, ficavam os litros de Pingas, Vermutes, a batida de limão e coco, a Groselha, o Conhaque, a Catuaba, o Fernete. Acima do balcão, havia uma tábua que ia de uma prateleira a outra. Nela eram cuidadosamente dependuradas as mortadelas e os salames. Num dos cantos da prateleira, ficavam expostas as lingüiças frescas e as calabresas. Também havia as caixas de produtos salgados, como bucho de porco e os peixes manjubas, savelia e mulato preto. A carne seca era colocada em uma mesinha nos fundos.

Os doces, como maria mole, paçoquinha, cocada, pé de moleque, gibi, teta de nega, abóbora, batata, suspiro, tinham um destaque num dos cantos do balcão, dentro de um móvel de madeira e vidro o qual parecia um armarinho. Este era fechado com duas portinhas de correr. Havia também um pote de barro com água fresquinha que normalmente servia os transeuntes. Era muito comum beberem também água com groselha. Devido ao armazenamento da água no recipiente de barro, a bebida ficava refrescante mesmo com a falta da geladeira. Esta era um acompanhamento perfeito para o sanduíche de pão com mortadela, fatiada à faca, ou para um lanche de sardinha em lata com cebolada picada. O pão chamava-se filão.

As demais bebidas ficavam no depósito da esquerda e as opções não eram muitas: guaraná e soda, da Antártica e Brahma, respectivamente, e cerveja também dessas marcas. Somente no final dos anos sessentas surgiram a coca-cola, a fanta laranja e a fanta uva. Não se consumia refrigerante como nos dias de hoje, pois, por falta de energia elétrica, não podiam ser gelados.

Num armazém, o freguês entregava a lista de compras ao vendedor, ou seja, não era ele mesmo que pegava as mercadorias na prateleira. Uma lista básica continha: arroz, feijão, açúcar cristal, sal, farinha de trigo, farinha de milho, banha, sabão em pedra, sabonete, pasta de dente e fósforos.

As atividades do dia a dia no armazém eram revezadas entre o meu pai e meu tio. Meu pai era o responsável no domingo; o meu tio, na segunda. Assim ia até o sábado, quando os dois trabalhavam juntos, devido ao grande movimento de clientes. Estes chegavam dos sítios vizinhos e até de outras localidades e o sábado era o dia no qual os fregueses da roça vinham comprar.

Toda quarta-feira, chegava por volta do meio-dia o caminhão do português Amadeu, trazendo a mortadela, o salame, o bacalhau, a lingüiça, os queijos de diversos tipos e os demais produtos desta linha. Eu, a minha irmã Kika, o meu primo Antônio Luiz e a minha prima Maria Inez (os meninos com sete e as meninas com quatro anos) ficávamos atentos quando da chegada do Português, pois sempre ele ia até o baú do caminhão, pegava quatro salsichas e distribuía uma para cada criança. Agradecíamos e íamos todos felizes para as nossas casas nos deliciando com aquelas que, na maioria das vezes, se tornavam nossa mistura naquele dia.

Foi numa dessas quartas-feiras, enquanto brincávamos na casa do tio Juvenal, do outro lado do rio, que o episódio que irei relatar ocorreu. Era dia de meu tio cuidar das plantações e do meu pai ficar no comando do armazém. Para a felicidade da criançada, o português encostou aquele velho caminhão em frente à venda. Eu e minha irmã saímos em disparada, pois, se o português fosse embora, adeus salsichas. Para irmos de lá para perto do caminhão tinha uma passagem de madeira sob o rio, logo à frente a estradinha e o ao lado ficava o armazém. O meu primo pediu para esperá-lo e saiu também atrás da gente. O meu tio Juvenal, sempre muito severo na educação dos filhos, ordenou:

- Pare imediatamente e volte para casa!

Mas o meu primo nem deu ouvidos e saiu correndo em direção ao Português e seu caminhão. O meu tio, percebendo que não fora atendido, saiu gritando:

- Eu te pego, seu moleque desobediente!

O Antônio Luiz correu e correu, mas estava na iminência de ser alcançado. Tentando fugir da surra e ao mesmo tempo indo em busca da tão desejada salsicha, pulou dentro do ribeirão. Naquele momento, ele nem se lembrou do fato de que não sabia nadar, o desespero para alcançar a salsicha e não ser alcançado por seu pai era muito grande! Tio Juvenal se jogou na água de roupa, de bota de borracha nós pés e de chapéu de palha na cabeça e o apanhou, nadando com ele até a outra margem.

Ali, meu primo ainda atordoado apanhou pela primeira vez por ter desobedecido, saído sem o consentimento de seu pai. Quando retornou para a casa, puxado pelo braço, a surra pelo salto no rio foi ainda mais elaborada, pois lá havia sempre pronta uma varinha de marmelo que esperava atrás da porta para esses momentos de desobediência plena. Ainda bem que a lei das palmadinhas ainda não existia, senão...

3 comentários:

  1. Olá João!
    Poxa, primeiramente queria te dar os parabéns pelo Blog e pelas histórias! Algumas delas tive o prazer de ouvir, digamos, ao vivo, já que uma grande fã sua sempre pede pra vc me contar! hehe! Mas em palavras escritas fica mais legal ainda! Aliás, que veia literária: a descrição de cenário é tão rica que me senti fazendo uma compra a granel na venda e olhando para a balança vermelha...
    Espero ainda ler várias histórias suas João!
    Aproveito também para dar parabéns novamente, não só pelo blog, mas pela família maravilhosa q vc tem!
    Até a vista!

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  2. Nossa o tinha q ser o Antonio Luiz mesmo para pular no rio sem saber nadar!!!!!!! e ainda por causa de uma salchicha....e ainda levar uma surra!!!! kkkkk

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  3. Primo-Irmão

    Essas suas Lembranças! que gostoso, eu leio e me imaginando naqueles senários.
    Mas acredite se quiser
    O filho do`Portugues, Amadeu,faz a praça aqui em Guararema até hoje, do mesmo jeito que o pai dele.
    De vez em qdo eu me deparo com ele no seu Caminhão.

    abraço

    Laudenir

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