quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A primeira vez que vi o mar

A minha mãe estava colocando o último canecão de água na bacia para temperar a água quente para o meu banho, quando o meu pai chegou e disse que não precisava ter pressa, pois a Ester não iria à aula naquele dia. Tinha ouvido no rádio que haveria uma revolução. Era o golpe militar de 1964 que culminou na repressão militar e acarretou profundas modificações na organização política do país: ditadura militar, luta armada e os governos militares.
Esses fatos nós não acompanhamos, pois ouvíamos muito pouco as notícias. A única comunicação com as ocorrências do mundo chegavam através do rádio que muito pouco falava a respeito desse período negro de nossa história.
A nossa rotina consistia em ir à escola, participar das missas, frequentar as aulas de catecismo, que eram ministradas pelo meu tio Juvenal, e as brincadeiras normais de crianças daquela idade. Além da cidade de Guararema, conhecíamos somente Mogi das Cruzes e Jacareí.
Quando íamos à igreja, eu e o meu primo Antonio Luiz, servíamos a celebração como coroinhas, isso pelo menos uma vez por semana e preferencialmente as dominicais.
O padre João Rosa era como um ente querido da família, pois chegou à paróquia logo após a sua ordenação na Catedral de São Paulo. Antes, havia ficado quatro anos em Roma, e logo passou a frequentar as nossas casas. Sempre muito cordial, carinhoso, gentil, mas também muito exigente. Toda a liturgia era ensaiada; desde a procissão de entrada, os gestos e atitudes corporais, a forma de conduzir o evangeliário, como postar as mãos, como se ajoelhar, jeito de se locomover no altar, tudo cuidadosamente planejado.
O seu zelo com as nossas vestimentas passavam pelo sapato engraxado, cabelos cortados e penteados, o comprimento exato da túnica vermelha, a colocação perfeita da sobrepeliz, na cor branca.
Nas procissões íamos à frente e escolhia-se alguém do grupo  para ser o cruciferário, que é quem sempre conduz a Cruz Processional, cruz alta formada por uma haste e pelo crucifixo.
Na Sexta-feira da Paixão, a procissão do Senhor Morto era bem elaborada, com a presença da figura de Maria, Mãe de Jesus, Maria Madalena, Verônica, São João apóstolo e outros.
A procissão seguia pelas principais ruas da cidade, em silêncio, e com cânticos piedosos. Todos acompanhavam em silêncio, como se fosse um enterro real.
Eu e o Antonio Luiz sempre nos dispúnhamos a tocar as matracas, instrumento e sinalizador, feito em madeira com um pedaço de ferro curvilíneo que quando sacudido se produz som.
Após a procissão, iniciava o beijo a imagem do senhor morto e os coroinhas cuidavam de organizar as filas, muito longas, pois nesse dia muitas pessoas tinham o hábito de ir à igreja, mesmo os de menor devoção religiosa.
O Padre João Rosa, sabendo de nossa pouca oportunidade de sair para outras localidades, certo domingo, após a missa perguntou:
- Quem daqui do grupo já foi à praia?
Apenas o Raul e o Manoel ergueram as mãos.
Ele continuou já de uma forma mais animada:
- Então pessoal, no próximo feriado de 1.o de maio, vamos à Santos!

Foi uma alegria geral. Todos ficaram eufóricos e comentando uns com os outros o quanto seria bacana ir à praia. Menos eu e o Antonio Luiz, pois sentimos um misto de alegria e medo de que os nossos pais não permitissem.
Mas estávamos enganados, pois eles confiavam muito no padre e permitiram, desde que tomássemos todos os cuidados com a praia, pois seria um território desconhecido também para eles.
Naquele feriado, bem cedinho, saímos de bicicleta, eu, o Antonio Luiz e o tio Juvenal, em direção à praça da matriz. Porém, antes, a tia Odete, que também nunca tinha ido ao litoral, recomendou bastante para que não nos dispersássemos do grupo e que, principalmente, quando ouvíssemos um barulho muito alto: a onda! Vindo em direção ao banhista ela poderia engolí-lo. Fomos com essa informação na cabeça: “todo o cuidado com o tal barulho alto”.
Chegando à praça, a perua Kombi azul do Sr. Carlos Benites já estava nos esperando. Quando chegaram os demais, foram tomando seus acentos. Após uma oração do Pai Nosso e Ave-Maria, seguimos viagem.
Na frente, além do motorista, o Sr. Carlos, sentaram-se o Padre João e o sacristão Armindo. No banco do meio, o Manoel, o Raul e o Luiz Gonzaga. No banco de trás, eu, o Antonio Luiz e o Carlos Augusto.
Rumamos assim pela estrada de Mogi das Cruzes, Índio Tibiriçá em Suzano e Via Anchieta no ABC Paulista. Quando aproximamos da Serra do Mar, todos ficaram maravilhados com aquela paisagem, um misto de neblina, alguns raios de sol, muitos túneis, e, lá embaixo, aquele mar azul. Quase nem falávamos para não perder nenhum detalhe. Tudo muito incrível, as curvas, as florestas, as cachoeiras, tudo novidade.
Quando chegamos à orla, praia José Menino, o Sr. Carlos estacionou a Kombi próximo a areia, o padre fez as últimas recomendações e, como já estávamos com shorts embaixo das roupas, as tiramos. E antes de sair em disparada para a água, ainda pudemos observar aquele cenário magnífico, de um lado a imensidão do mar, e de outro, o deslumbrante visual dos arranha-céus e as montanhas da Serra do mar.
Uns provavam da água para ver se realmente estava salgada, outros rolavam na areia. O Antonio Luiz estava meio preocupado com aquilo tudo e me chamou de lado e disse:
- Primo, lembre o que a minha mãe falou: “se ouvir um barulho alto é a onda vindo engolir a gente”.
Mesmo temerosos, embora soubéssemos nadar bem, pois o ribeirão era a nossa segunda casa, nos benzemos, molhamos os pulsos e a moleira, e entramos água adentro.
Tudo muito divertido, o grupo sempre juntos, todos achando aquilo muito diferente, até o padre, nos observando atentamente a alguma distância, estava de calção de banho. Estávamos um pouco espantados, pois nunca antes o vimos sem a batina preta.
Ficamos ali mais ou menos uns vinte minutos. Dali a pouco, ouvimos um barulho ensurdecedor vindo das águas do mar. Eu e o Antonio Luiz nos entreolhamos e no mesmo momento ele saiu em disparada para a areia, pois na sua cabeça era o tal som que a sua mãe tanto recomendou. Saiu pulando as ondas, tropeçando nos colegas, caindo e levantando, com uma fisionomia muito assustada. Foi quando eu percebi que esse som vinha de uma buzina de um navio cargueiro que estava saindo do cais, passando pela orla, indo em direção ao alto mar.
Corri até o meu primo e tentei acalmá-lo, mas já era tarde: a diarréia e a dor de barriga, pelo medo, chegaram de imediato e a única alternativa foi retornar ao mar para cuidar de limpar o ocorrido.
Não contamos para ninguém e o resto do dia foi muito proveitoso: fomos ao cais do porto, atravessamos até a ilha de Guarujá de Ferry Boat, jogamos futebol na areia fina, e terminamos o passeio em um convento de freira, onde habitava uma irmã do Padre João, que também era freira, e pertencia a uma Congregação daquela localidade.
A atuação do Padre João Rosa naquela comunidade foi essencial em nossa educação e formação, tanto religiosa quanto laical (leigos).
Ficou durante aproximadamente sete anos na Paróquia de Nossa senhora da Escada e São Benedito, em Guararema, até o ano de 1969. Saiu para assumir como Pároco em Sabaúna, indo posteriormente trabalhar em Jacareí. Retornou depois de algum tempo à Diocese de Mogi das Cruzes, desenvolvendo inúmeros trabalhos pastorais na região.
O retorno, não tenho muito a contar, pois devido ao cansaço, pelo dia especial,  dormimos na saída e só acordamos na chegada a Guararema.

Toda vez que retorno à cidade de Santos, recordo-me com carinho e saudade da minha primeira vez que vi o mar.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Craque na vida e na bola

O meu tio José Moreira viveu a infância, adolescência e juventude em condições normais.
Como membro de uma família simples, mas de ótima formação ética, desfrutava de tudo o que lhe fora oferecido, principalmente a educação que recebeu de seus pais, cercada de muito carinho, mas também muito enérgica, o que norteou toda a sua existência.

Estudou em uma escola rural até o terceiro ano primário, o que era comum aos meninos, pois as meninas nem sempre frequentavam as escolas naquela época. Desde cedo, já despontava como alguém muito inteligente. Tinha interesse muito especial pelos negócios e amava o futebol. Ainda adolescente, trabalhava na roça plantando verduras, legumes e chegou até a desenvolver atividades em carvoaria, junto com o seu irmão, o tio João.

Conheceu na juventude Ana, tia de meu pai, que morava no centro da cidade de Guararema. Logo fizeram planos para se casar. Assim que realizaram este sonho, passaram a morar no prédio que o meu avô havia construído com a finalidade de ser um botequim , mas que a partir de então passou a funcionar como “Armazém de Secos e Molhados São José”, pois o tino empreendedor de tio José mostrava ser essa a melhor atividade no período.

Eles conciliavam as plantações de hortaliças que vendiam no Mercadão de São Paulo com as atividades desse comércio. A tia Ana revezava entre os afazeres da casa e o atendimento ao balcão.

Ali nasceram os primeiros filhos (Laerte, Alaide e Lídia) e, à medida que a família cresceu, ampliou-se a construção com uma casa em anexo, mais ampla, que contava com dois quartos (no porão), além de uma sala grande e uma cozinha. Da sala para o andar do armazém, ligando os dois ambientes, havia uma escada com 13 degraus de alvenaria. O banheiro ou privada, como era costume se chamar, ficava há uns dez metros da entrada da cozinha, mais próximo ao rio para que ali fossem despejados os dejetos.

Como sentiu o potencial de comerciante de sucesso de meu pai Fernando, Tio José percebeu a possibilidade de deixar esse armazém da roça aos seus cuidados. Estabeleceu-se na cidade, mudando-se para lá, mais precisamente para a praça do coreto, onde nasceram mais dois filhos, o Laudenir e a caçula Francisca, conhecida por todos como Kika. O meu pai, assim que ficou noivo de minha mãe, adquiriu o comercio e o manteve até a sua aposentadoria.

As nossas famílias sempre foram muito próximas, pois a partir do casamento de meus tios, o meu pai, antes somente um sobrinho, passou a ser também cunhado deles. Fomos criados e educados todos juntos e os primos eram e sempre serão como irmãos de sangue. Sempre consideramos os tios como nossos segundos pais!


Para a sua época, o meu tio José Moreira era muito avançado e tinha uma visão da vida muito apurada. Foi um homem sempre à frente do seu tempo. Mirou o futuro como ninguém! Estava sempre na vanguarda, pioneiro em mudar-se da roça para a cidade, deixando aquela vidinha tranqüila da pequena horta e da criação de porcos e galinhas para os desafios urbanos. Foi também o primeiro da família a dirigir e a tirar a Carta de Habilitação, sendo que ficou atrás do volante até os seus 85 anos de vida. Os seus carros foram de pequenos veículos como Fuscas, Opalas, Brasílias, caminhonetes, até grandes, como caminhões. Chegou a fazer viagens interestaduais, transportando madeiras e cargas diversas. Era curioso perceber que sempre nos porta-malas dos carros continham pelo menos um jogo de camisas de futebol, bola, bombas, apito, cartão vermelho e amarelo e rede para o gol, além de vários pares de chuteiras e meias.

Em sua casa, assistimos à primeira televisão, uma novidade para poucos privilegiados. Também foi o primeiro a possuir eletrodomésticos, como geladeira, liquidificador e, especialmente, chuveiro elétrico, onde tomávamos banhos quentes e fazíamos a maior festa.

Teve uma vida inteira de uma conduta exemplar. Impossível alguém ter qualquer questionamento em relação a sua postura, seja nos negócios, no âmbito familiar ou, especialmente, no esportivo (quando se pensa em meu tio, é impossível não associá-lo ao futebol). Ainda na juventude, juntamente com os seus irmãos Augusto, João, Juvenal e Bento, com a anuência de meu avô Antonio Moreira, formaram o primeiro campo de futebol daquelas redondezas, fundando o 77 FC.

Logo eles começaram a juntar amigos até organizar um time, chamado então de “quadro”.
As posições dos jogadores em campo também tinham outro nome. No gol ficava o goalkeeper (lê-se golkiper). Havia ainda os alfa direito e esquerdo, os beque de espera e de avanço, o center alfa e o center four. Por um longo período, o meu pai foi o keeper, o tio João, o beque de avanço, o tio Bento, alfa esquerdo, o tio Augusto, ponta-esquerda, o habilidoso tio Juvenal (craque de recursos avançadíssimos para aquela realidade), o meia-esquerda e o sempre seguro tio José, o center alfa. Podiam-se chamar Irmãos Moreira, mas manteve-se sempre como 77 FC.

Esse campo existe até hoje, na beira da estrada, sempre com a grama bem aparada pelos carneiros do Seu Zé Lopinho e é um ponto de referência daquela comunidade. Certamente, não existe na região um campo com tanta longevidade.

A camisa mais tradicional do time era listrada, tricolor (branca, vermelha e preta), mas houve também ao longo se sua história outras variações, como toda azul e também branca, sempre com o distintivo do clube bordado no peito.
O tio Zé Moreira não era de fazer muitos gols, o que se justifica pelo fato de que na época aquele que jogasse na defesa não ultrapassava o meio do campo, mas arriscava algumas cabeçadas nos escanteios e fez as suas marcas.

Suas conversas invariavelmente acabavam em algum “causo” relativo à bola. Era um habilidoso contador de histórias. Seu time de coração era o Palmeiras, embora tivesse ido poucas vezes ao estádio, pois preferia acompanhar pela televisão. Acreditava que jogar profissionalmente era muito fácil, pois achava que não tinha a mesma pegada e rapidez da várzea. Sempre se lembrava dos inúmeros jogos passados, incontáveis lances e até do placar de várias partidas. Falava com desenvoltura dos detalhes de jogos ocorridos há décadas.

Houve um jogo em especial: encontraram-se o EC 77 e o Ipiranga FC no campo do Guararema FC. Lá pelos 20 minutos de partida, atearam fogo no capim gordura que havia em abundância nas cercanias do campo e, à medida que ia aumentando o fogo, uma nuvem de fumaça começou a pairar sobre o gramado, tornando praticamente impossível de enxergar mais de um metro de distância, mas o juiz nada de parar o jogo. O placar encontrava-se naquele momento 1 x 1 e ninguém queria perder esse clássico. Só percebiam a bola quando esbarravam nela. Dizia a lenda que o centroavante da equipe adversária teria carregado a bola em baixo do braço e colocado-a nos fundos da rede. Chegou um momento em que todos pararam e, às lágrimas, ficaram sentados no barranco esperando que a fumaça se dissipasse. Depois de algum tempo, veio uma providencial ventania e, com a visão melhorada, reiniciaram a partida que terminou em
3 x 2 para o 77 FC.

Tio José gostava tanto de jogar bola que a sua vida e o seu dia-a-dia não fazia tanto sentido se não estivesse atuando. Contava um episódio que em certa altura da sua juventude pegou um berne na cabeça, muito comum aos meninos, que infeccionou tanto que nem podia se mexer, pois doía demais. Mesmo assim, foi ao trabalho cortar cana com o tio Augusto. Como ele não podia se esforçar-se demais, ficava somente empilhando as canas cortadas para depois fazer um feixe e poder transportar para perto do engenho. O tio Augusto cortava e atirava uma por vez para ele. Em uma dessa operação, errou a jogada e a cana acertou a cabeça do tio José, bem no calombo do berne que imediatamente furou, jorrando para longe toda a inflamação. Imediatamente, como se não estivesse sentindo nenhuma dor, deu um forte grito de alivio: “Graças a Deus, domingo já vou poder jogar bola”.

Além do amor que tinha em jogar pelo 77 FC, defendeu os times do E.C Bellard , Anjoma FC, Capela D’ Ajuda FC, EC Merendá e Freguesia da Escada FC.
Preparou o primeiro campo no Bairro do Ipiranga, o que ainda era de terra, hoje Estádio Municipal José Luiz Gonçalves da Silva.
Junto com o seu filho Laerte, atuou como técnico no melhor time juvenil do Guararema FC, onde revelou craques como: Xina, Tanaquinha, Marcio, Zé Carniça, Larrúbia, Zé Luiz, Tião, Bananeira, Pedrinho, Eduardão, Alcides, Ivan e outros. Muitos iam ao campo para ver esses meninos, que jogavam na preliminar, e depois deixavam o estádio, pois achavam muito mais prazeroso assisti-los do que a equipe principal.

Nas festinhas de família, quando tinha alguma música tocando, era inevitável a percussão nas colheres, uma de costa para a outra, batendo na perna e na mão, fazendo um barulho peculiar e cantava uma musiquinha: “lero-lero-lero...” que ninguém sabia a letra.
Outra famosa batucadinha era feita com as mãos, entrelaçando os dedos e mexendo as munhecas para cima e para baixo, provocando um som, que só ele conseguia reproduzir.

Aos 77 anos, já totalmente grisalho, mas ainda com boa saúde, aposentou-se do futebol em uma linda festa, em uma partida da família x amigos, com direito a filmagem, reportagem, entrevistas e tudo o mais que tinha direito. Marcou um gol na cobrança de pênalti, aos 38 minutos do segundo tempo. Não faltou a famosa “plantada de bananeira” e a volta olímpica. Ainda participou de algumas partidas esparsas, mostrando as suas habilidades, apesar da sua idade já avançada.

No ano de 2007, aos 87 anos, o nosso ídolo maior foi convocado para compor a defesa da seleção celestial, juntando-se a tantos outros amantes do futebol, como tio João, meu pai Fernando, Beig, Ari, Juqueri, Zé Carniça, Dindim, Nelson Braga, Rubens, Tomateiro, Angelo e outros. Devem estar jogando para alegria de todos os anjos!

Um ser iluminado, um guerreiro que não temia o combate. Gentil, honesto, generoso e engraçado. O seu modelo será lembrado e seguido sempre pelos seus sobrinhos, filhos, netos e bisnetos. Percebe-se em todos os seus descendentes um pouco das várias qualidades suas, a se destacar o carinho uns com os outros, a educação, a retidão e o amor pelas pessoas, qualidades que estão passando para as futuras gerações.

A vida não basta ser vivida, tem que deixar legados, sonhos e exemplos. Muito obrigado por tudo que o senhor nos deixou.

Saudades, meu querido tio José Moreira!

Meu avô, meu mestre!

Com olhar calmo, sempre mirando o horizonte, pausadamente comentava: como a natureza é bela e sábia! Nascido por volta de 1890, tinha idéias revolucionárias e extremamente avançadas para o seu tempo. Preocupava-se com as nascentes e com a poluição do solo. Quando ainda ninguém falava sobre reciclagem, o meu avô materno Antonio Moreira já separava os vidros, os alumínios, os papelões, não atirava na terra nada que pudesse contaminá-la e fazia questão de explicar para todos nós que o solo tinha que ser muito bem cuidado, senão seria impossível as plantações vingarem. Os terrenos eram por ele muito bem cuidados para que não houvesse erosões. Também, dizia que o bem mais preciso do planeta seria um dia a água potável. Não tinha nenhuma escolaridade formal, mal e mal escrevia o seu nome e soletrava apenas algumas palavras, mas tinha uma vivência e uma inteligência raras. Na sua humildade de homem sem formação acadêmica, era um sábio. Era severo na educação dos filhos e, por conseguinte, dos netos. Tinha uma fé inabalável e fazia questão de iniciar a todos no temor a Deus. Adorava tocar viola e assistir aos jogos na beira do campo de futebol. Para ele, compadre era parente e amizade, um tesouro.


De sorriso contido, tinha um semblante sério, parecendo uma pessoa brava, mas no íntimo era muito amável e divertido.

Já havia nascido sete dos seus oitos filhos, Deoclésia, João, Helena, José, Augusto, Juvenal e Bento, quando adquiriu um sítio às margens da estradinha de terra que era a única ligação rodoviária entre São Paulo e Rio de Janeiro. Foi barganhado por um casinha, cuja propriedade passou a ser do Sr. Adelino Lima, com localização próxima às margens do rio Paraíba, em Guararema. Naquela época, minha tão querida cidade era detentora de meia dúzia de ruas, ainda sem pavimentação, e de população bem pequena. No sítio que adquiriu, construiu a casa sede e mudou-se para lá, onde nasceu a sua filha mais nova, minha mãe Ruth, que mora nesta mesma casa até os dias de hoje.

De todas as suas dezenas de netos, eu tive o privilégio de ter convivido mais tempo ao seu lado, pois, além de ter morado até os dez anos bem pertinho de sua casa, começamos a morar juntos quando mudamos para sua casa do sítio no momento em que minha avó Gasparina adoeceu (por conta de um AVC). Com a mudança, minha mãe pôde cuidar dela até os seus últimos dias.

Quando saíamos para caminhar entre os arvoredos, a explicação sobre as plantas era muito elaborada. Para que servia um guatambu, o que era uma árvore mamica de porca, um jacaré, uma pata de vaca, um ingazeiro, uma aroeira, uma embaúba, uma figueira, um jacarandá, uma quaresmeira, Ipês de todas as cores e tantos outros esclarecimentos estavam presentes nas conversas. Também, explicava detalhadamente como encabar uma foice, uma enxada, um machado, embora soubesse perfeitamente que talvez nunca fôssemos utilizar esses utensílios para a nossa profissão.

Exímio carpinteiro, tinha muitas habilidades manuais. Era muito organizado e seu lema era: “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. As suas ferramentas eram rigorosamente guardadas em suas devidas prateleiras e todas permaneciam minuciosamente afiadas e bem cuidadas. Mantemos até hoje muitas de suas peças no sítio, confeccionadas por ele próprio, como roda de ralar mandioca, fuso para prensa canga, canzis e moenda de cana de açúcar.

Os passeios a cavalo eram uma verdadeira aula, pois ele me ensinava desde como preparar a montaria até a maneira correta de conduzir o animal. Nos passeios, era sempre elegante na vestimenta: usava um chapéu de feltro marrom da marca Cury, camisa xadrez, calça cáqui e botinas de couro. Cabelo sempre bem penteado, barba feita e bigode aparado. Um relógio de bolso e óculos para leitura compunha o seu visual.

Quando nós ainda morávamos na casa do armazém, do outro lado da estrada, pelo menos uma vez na semana o meu avô e a minha avó iam nos visitar. Era a maior alegria! De tantas e tantas passagens, a seguinte me marcou profundamente. Eu tinha por volta de seis anos e minha irmã Kika, três. Numa noite, ao ouvir o barulho deles chegando, fiquei tão contente que joguei uma girafinha, meu primeiro e único brinquedo, para o alto. Ela chocou-se com o suporte que aparava as panelas, localizado em cima do fogão à lenha, quebrando-o e fazendo com que todos os utensílios caíssem ao chão. Uma delas, a mais cobiçada de todas, a de pressão, teve seu cabo quebrado. Lembre-se de que, naquele tempo, uma panela de pressão era a maior raridade.

Nessas visitas, ele sentava-se numa tripeça de madeira, bem baixinha, e ali ficávamos juntos brincando de cavalinho com meu brinquedo. Montava os arreios na girafinha e explicava, detalhe por detalhe, como encilhar um animal, fazer arreios, preparar o couro e trançar um laço. Era uma verdadeira aula. Eu tinha a maior curiosidade de aprender sobre tudo, característica bem comum às crianças, principalmente numa época em que a comunicação era muito restrita aos contatos e às relações interpessoais. Até hoje guardo com muito zelo esse meu primeiro brinquedo. Minhas filhas Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela brincaram com a girafinha e agora o meu neto Lorenzo, de três anos, tem por ela o maior carinho. Aliás, ele acha que é dono dela, mas sempre na hora do fim da brincadeira ele a guarda no lugar especial a ela reservado em minha casa e diz que ele não leva embora porque eu tomo conta dela.

A girafinha foi o meu primeiro brinquedo e, sem dúvida, é o objeto que mais me faz lembrar do meu querido avô, aquele que foi e será meu eterno mestre.

Muitos da sua descendência tem um pouco dele, os filhos, os netos, os bisnetos e tataranetos, o que nos faz uma família muito unida e diferenciada.

Convivi intensamente com ele até final, nos anos 70, e estive ao seu lado nos seus últimos instantes de vida. Quantas saudades!

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Lembrança de uma amizade verdadeira

Saía de casa bem cedinho, antes mesmo do nascer do sol, ia a caminho da escola, pés descalços, calça curta azul marinho e camisa de brim branca. No embornal de pano, feito carinhosamente pela minha mãe, levava o caderno brochura, estojo com lápis preto e coloridos, bem apontados. Não faltava um lanchinho de pão com mortadela. Na encruzilhada, ao lado da ponte do ribeirão do Salto, encontrava outros colegas que vinham do lado do sítio dos Cubas, os filhos do Seu Zé Mineiro. Passávamos por debaixo do bambuzal, ao lado da casa do tio Bento que, naquela época, antes da demolição de sua casinha de pau-a-pique por uma enchente, ficava bem mais perto do ribeirão. Subia o morro do tio Juvenal e seguia pela estradinha do coronel em direção à Freguesia da Escada.

 Quem chegava primeiro na encruzilhada, aguardava os demais para só então seguir o caminho. Numa das manhãs em que eu cheguei mais cedo, ao ouvir umas conversas vindas da curva do rio, iniciei devagarzinho a caminhada em direção à subida do bambuzal, pois achei que já eram meus amigos chegando. Depois de alguns passos, percebi que não era quem eu esperava, mas, sim, dois rapazes montados em bicicletas.

 Um era mais jovem, tinha entrado há pouco na adolescência, e o outro, mais velho. Logo que percebeu a minha presença, o mais jovem, que vinha na frente, aparentemente mais falante, parou a bicicleta e foi logo puxando conversa:
     - Tudo bem? Está indo pra escola? Fica longe?

 Prontamente percebi que era alguém novo pelas redondezas que queria iniciar uma amizade. Respondi o que havia me perguntado e também quis saber quem eles eram, onde moravam, de onde vieram, pois como conhecia todos nos arredores, sabia, com certeza, que eram forasteiros, até pelo sotaque um pouco carregado, meio paulista, meio mineiro, bem diferente do que estava acostumado.

 Este primeiro contato foi muito rápido, pois logo chegaram meus colegas, mas foi suficiente para saber que se chamavam Valdomiro (o mais novo) e Sebastião, que eram irmãos e que tinham acabado de se mudar para o sítio vizinho, vindos de Cachoeira Paulista. Despedimos-nos e segui meu caminho, sem saber que nasceria ali, com o Valdomiro Arruda, uma das mais lindas amizades de minha vida.

 A família Arruda, uma das mais íntegras que conheci, era formada pelo Sr. Norival e Dona Benedita e pelos sete filhos: José, Benedita, Genésio, Sebastião, Valdomiro, Maria José e Expedito. Com exceção do José, todos foram morar ali no sítio que o Sr. Artur Navarreti, o patrão da família, havia comprado recentemente do José Português. Uma linda propriedade, com uma sede, casa de caseiro e várias casas menores distribuídas em ruas formavam uma espécie de vila. Além disso, havia cocheiras para os cavalos, chiqueiros para os porcos, árvores frutíferas, mangueiras para as vacas, tanques de criação de peixes, oficina, hortas, plantação de eucalipto para uso nos mourões de cerca, galinheiro para as galinhas caipiras, galinhas de angola, tanques para os patos, uma carroça para uso diário e uma charrete de passeio. Enfim, era o mais bem formado sítio que existia em nossas redondezas.

 A partir de nosso primeiro encontro, começamos a nos ver frequentemente. No finalzinho da tarde, reuníamo-nos no armazém do meu pai. Assim, o Valdomiro cada vez mais ia se enturmando com o pessoal e se acostumando com nosso jeito de ser. A principio causou certo desconforto, pois de vez em quando deixava escapar algum palavrão, tipo de expressão que não usávamos e com a qual não estávamos acostumados, mas não era nada que fosse tão agressivo. Logo foi se adaptando e se continha neste sentido.

Percebemos muito rapidamente quão aquela família era trabalhadora, pois cuidava de toda a propriedade sozinha, com ajuda de um ou outro contratado quando havia colheitas imediatas ou alguma obra de emergência. Toda a limpeza do sítio era feita por seus membros. Até mesmo a estradinha de aproximadamente trezentos metros de extensão era varrida semanalmente. Também era de responsabilidade deles o cuidado com a saúde dos animais, sendo que os vacinavam, imunizando-os de possíveis pestes e doenças, sempre que necessário.

 Em uma tarde, quando o sol já estava se pondo, eu vi o Sr. Norival passando apressadamente com a carroça em direção ao centro de Guararema e retornado rapidamente com a companhia da Dona Balbina, a parteira que ajudou em quase todos os nascimentos das redondezas, uma vez que naquele tempo ninguém tinha seus filhos no hospital.

 Como sempre muito curioso, perguntei ao meu pai o que estava acontecendo e ele respondeu prontamente: - Meu filho, a família vizinha deve estar crescendo. Vai nascer alguma criança por lá!

 Ele estava correto! Nascia naquele dia o filho caçula dos Arruda, o oitavo filho: o Messias. Logo mais à noitinha, Valdomiro, que já estava muito enturmado, veio nos dar a noticia desse nascimento.

 Com o passar do tempo, eu e o Valdomiro ficamos cada vez mais amigos e ainda mais unidos. Gostávamos muito de jogar futebol, esporte que seu pai não aprovava, pois não gostava de jogo. Mesmo assim, Valdomiro teimava em ir ao campo meio escondido e foi um atleta de boa qualidade. Para jogar, ele usava calças compridas arregaçadas até o joelho, pois não podia sair de calção da sua casa. Além de jogar bola, fazíamos muitas atividades: estudávamos (até o Ginásio), pescávamos, caçávamos rãs, malhávamos o Judas no sábado de aleluia, fazíamos passeios a cavalo aos domingos, sendo que nessa atividade juntavam-se a nós os meus primos Laudenir e o Jorge. O Laudenir ia com o cavalo Tordilho (do meu avô Antonio), eu gostava de montar a égua Dalila, o Valdomiro ia com o Alazão e o Jorge com o Sanção. Apostávamos corrida e o Sanção, apesar de ser o menor de todos, chegava invariavelmente na frente. Ao retornarmos, passávamos nos estábulos da fazenda para lavar os cavalos e devolvê-los fresquinhos, pois o meu avô Antonio ia conferir para ver se não estavam fadigados.

 Todas as manhãs, no período de férias, a primeira atividade nossa era tomar leite. Saíamos cedinho de casa, seguíamos até a mangueira levando o copo com o açúcar, e, diretamente da teta da vaca, tirávamos o leite bem quentinho. Era uma delícia! A nossa vaca preferida era a Caneca, muito boa de ordenhar, mas também muito arisca. Quando chegávamos à beira do curral, já sabia que em pouco tempo ia ser a vez dela, ficava nos olhando de canto de olho e, assim que o Valdomiro amarrava as suas pernas para que o bezerro iniciasse as primeiras mamadas, prontamente ficava inquieta esperando a nossa entrada. Se déssemos alguma vacilada, ela tentava nos afastar dali. Mesmo assim era a nossa preferida, pois o seu leite parecia ser o mais saboroso!

 Após o almoço, voltávamos à fazenda para algum tipo de diversão, seja para brincar de laço nos barrancos, de pesca nos tanques de tilápia, seja para simplesmente tomar água com groselha, deixada em um litro, enterrada no brejo para refrescar. Ficávamos boa parte do dia juntos, mas mesmo assim, com tantos anos de convivência, nunca tivemos nenhuma desavença ou qualquer desentendimento.

 O maior legado que me deixou, além, é claro, de nossa grande amizade, foi ter me falado com tanta convicção que o Pelé era o rei do futebol e que nunca apareceria outro jogador melhor que ele em todo o mundo. Assim, tornei-me torcedor do Santos FC.

 Fomos crescendo e continuamos a realizar muitas atividades juntos, como fazer trabalhos do Ginásio (sempre procurávamos ficar no mesmo grupo), jogar sinuca no Bar do Monteiro na Freguesia da Escada, nadar na represa do Coronel, passear em Cachoeira Paulista, ir a bailinhos em Lorena e a festas na Santa Cabeça, onde só era possível chegar de caminhão leiteiro. Foi ele também que trouxe de São Paulo a minha primeira calça jeans, da marca Lee, quando já morava na capital e trabalhava na antiga Light. Acompanhava-me ao dentista, pois, como eu era menor, não podia ir a Mogi das Cruzes sozinho.
Ajudou-me nas primeiras redações.

 Valdomiro sempre foi muito correto com os seus amigos. Mais tarde, passou também a ter amizade com meu pai, que era bem mais velho que ele, sendo que costumava passear juntos, o que não é tão normal para pessoas de idades diferentes.

 Os meus pais adotaram a Família Arruda como nossos parentes. Até hoje, seus membros visitam a minha mãe com bastante freqüência, principalmente por ocasião de seu aniversário. Maria José, Genésio e Expedito não deixam de levar para ela um mimo, que normalmente é um vaso com flores ou um buquê de rosas.

 Fui seu padrinho de casamento e logo ele começou a trabalhar na empresa Papel Simão, em São Silvestre (Jacareí). Perdemos o contato, pois nossas vidas tomaram outros rumos, mas com certeza sempre vai estar presente por tudo que representou essa maravilhosa relação de companheirismo, respeito, lealdade e, acima de tudo, de troca de experiências imensuráveis e muita cumplicidade.

 Encontrei em minha vida outros tantos amigos, mas esse sempre terá um lugar especial em meu coração!

terça-feira, 27 de março de 2012

O Craque na vida e na bola

O meu tio José Moreira viveu a infância, adolescência e juventude em condições normais.
Como membro de uma família simples, mas de ótima formação ética, desfrutava de tudo o que lhe fora oferecido, principalmente a educação que recebeu de seus pais, cercada de muito carinho, mas também muito enérgica, o que norteou toda a sua existência.

Estudou em uma escola rural até o terceiro ano primário, o que era comum aos meninos, pois as meninas nem sempre frequentavam as escolas naquela época. Desde cedo, já despontava como alguém muito inteligente. Tinha interesse muito especial pelos negócios e amava o futebol. Ainda adolescente, trabalhava na roça plantando verduras, legumes e chegou até a desenvolver atividades em carvoaria, junto com o seu irmão, o tio João.

Conheceu na juventude Ana, tia de meu pai, que morava no centro da cidade de Guararema. Logo fizeram planos para se casar. Assim que realizaram este sonho, passaram a morar no prédio que o meu avô havia construído com a finalidade de ser um botequim , mas que a partir de então passou a funcionar como “Armazém de Secos e Molhados São José”, pois o tino empreendedor de tio José mostrava ser essa a melhor atividade no período.

Eles conciliavam as plantações de hortaliças que vendiam no Mercadão de São Paulo com as atividades desse comércio. A tia Ana revezava entre os afazeres da casa e o atendimento ao balcão.

Ali nasceram os primeiros filhos (Laerte, Alaide e Lídia) e, à medida que a família cresceu, ampliou-se a construção com uma casa em anexo, mais ampla, que contava com dois quartos (no porão), além de uma sala grande e uma cozinha. Da sala para o andar do armazém, ligando os dois ambientes, havia uma escada com 13 degraus de alvenaria. O banheiro ou privada, como era costume se chamar, ficava há uns dez metros da entrada da cozinha, mais próximo ao rio para que ali fossem despejados os dejetos.

Como sentiu o potencial de comerciante de sucesso de meu pai Fernando, Tio José percebeu a possibilidade de deixar esse armazém da roça aos seus cuidados. Estabeleceu-se na cidade, mudando-se para lá, mais precisamente para a praça do coreto, onde nasceram mais dois filhos, o Laudenir e a caçula Francisca, conhecida por todos como Kika. O meu pai, assim que ficou noivo de minha mãe, adquiriu o comercio e o manteve até a sua aposentadoria.

As nossas famílias sempre foram muito próximas, pois a partir do casamento de meus tios, o meu pai, antes somente um sobrinho, passou a ser também cunhado deles. Fomos criados e educados todos juntos e os primos eram e sempre serão como irmãos de sangue. Sempre consideramos os tios como nossos segundos pais!


Para a sua época, o meu tio José Moreira era muito avançado e tinha uma visão da vida muito apurada. Foi um homem sempre à frente do seu tempo. Mirou o futuro como ninguém! Estava sempre na vanguarda, pioneiro em mudar-se da roça para a cidade, deixando aquela vidinha tranqüila da pequena horta e da criação de porcos e galinhas para os desafios urbanos. Foi também o primeiro da família a dirigir e a tirar a Carta de Habilitação, sendo que ficou atrás do volante até os seus 85 anos de vida. Os seus carros foram de pequenos veículos como Fuscas, Opalas, Brasílias, caminhonetes, até grandes, como caminhões. Chegou a fazer viagens interestaduais, transportando madeiras e cargas diversas. Era curioso perceber que sempre nos porta-malas dos carros continham pelo menos um jogo de camisas de futebol, bola, bombas, apito, cartão vermelho e amarelo e rede para o gol, além de vários pares de chuteiras e meias.

Em sua casa, assistimos à primeira televisão, uma novidade para poucos privilegiados. Também foi o primeiro a possuir eletrodomésticos, como geladeira, liquidificador e, especialmente, chuveiro elétrico, onde tomávamos banhos quentes e fazíamos a maior festa.

Teve uma vida inteira de uma conduta exemplar. Impossível alguém ter qualquer questionamento em relação a sua postura, seja nos negócios, no âmbito familiar ou, especialmente, no esportivo (quando se pensa em meu tio, é impossível não associá-lo ao futebol). Ainda na juventude, juntamente com os seus irmãos Augusto, João, Juvenal e Bento, com a anuência de meu avô Antonio Moreira, formaram o primeiro campo de futebol daquelas redondezas, fundando o 77 FC.

Logo eles começaram a juntar amigos até organizar um time, chamado então de “quadro”.
As posições dos jogadores em campo também tinham outro nome. No gol ficava o goalkeeper (lê-se golkiper). Havia ainda os alfa direito e esquerdo, os beque de espera e de avanço, o center alfa e o center four. Por um longo período, o meu pai foi o keeper, o tio João, o beque de avanço, o tio Bento, alfa esquerdo, o tio Augusto, ponta-esquerda, o habilidoso tio Juvenal (craque de recursos avançadíssimos para aquela realidade), o meia-esquerda e o sempre seguro tio José, o center alfa. Podiam-se chamar Irmãos Moreira, mas manteve-se sempre como 77 FC.

Esse campo existe até hoje, na beira da estrada, sempre com a grama bem aparada pelos carneiros do Seu Zé Lopinho e é um ponto de referência daquela comunidade. Certamente, não existe na região um campo com tanta longevidade.

A camisa mais tradicional do time era listrada, tricolor (branca, vermelha e preta), mas houve também ao longo se sua história outras variações, como toda azul e também branca, sempre com o distintivo do clube bordado no peito.
O tio Zé Moreira não era de fazer muitos gols, o que se justifica pelo fato de que na época aquele que jogasse na defesa não ultrapassava o meio do campo, mas arriscava algumas cabeçadas nos escanteios e fez as suas marcas.

Suas conversas invariavelmente acabavam em algum “causo” relativo à bola. Era um habilidoso contador de histórias. Seu time de coração era o Palmeiras, embora tivesse ido poucas vezes ao estádio, pois preferia acompanhar pela televisão. Acreditava que jogar profissionalmente era muito fácil, pois achava que não tinha a mesma pegada e rapidez da várzea. Sempre se lembrava dos inúmeros jogos passados, incontáveis lances e até do placar de várias partidas. Falava com desenvoltura dos detalhes de jogos ocorridos há décadas.

Houve um jogo em especial: encontraram-se o EC 77 e o Ipiranga FC no campo do Guararema FC. Lá pelos 20 minutos de partida, atearam fogo no capim gordura que havia em abundância nas cercanias do campo e, à medida que ia aumentando o fogo, uma nuvem de fumaça começou a pairar sobre o gramado, tornando praticamente impossível de enxergar mais de um metro de distância, mas o juiz nada de parar o jogo. O placar encontrava-se naquele momento 1 x 1 e ninguém queria perder esse clássico. Só percebiam a bola quando esbarravam nela. Dizia a lenda que o centroavante da equipe adversária teria carregado a bola em baixo do braço e colocado-a nos fundos da rede. Chegou um momento em que todos pararam e, às lágrimas, ficaram sentados no barranco esperando que a fumaça se dissipasse. Depois de algum tempo, veio uma providencial ventania e, com a visão melhorada, reiniciaram a partida que terminou em
3 x 2 para o 77 FC.

Tio José gostava tanto de jogar bola que a sua vida e o seu dia-a-dia não fazia tanto sentido se não estivesse atuando. Contava um episódio que em certa altura da sua juventude pegou um berne na cabeça, muito comum aos meninos, que infeccionou tanto que nem podia se mexer, pois doía demais. Mesmo assim, foi ao trabalho cortar cana com o tio Augusto. Como ele não podia se esforçar-se demais, ficava somente empilhando as canas cortadas para depois fazer um feixe e poder transportar para perto do engenho. O tio Augusto cortava e atirava uma por vez para ele. Em uma dessa operação, errou a jogada e a cana acertou a cabeça do tio José, bem no calombo do berne que imediatamente furou, jorrando para longe toda a inflamação. Imediatamente, como se não estivesse sentindo nenhuma dor, deu um forte grito de alivio: “Graças a Deus, domingo já vou poder jogar bola”.

Além do amor que tinha em jogar pelo 77 FC, defendeu os times do E.C Bellard , Anjoma FC, Capela D’ Ajuda FC, EC Merendá e Freguesia da Escada FC.
Preparou o primeiro campo no Bairro do Ipiranga, o que ainda era de terra, hoje Estádio Municipal José Luiz Gonçalves da Silva.
Junto com o seu filho Laerte, atuou como técnico no melhor time juvenil do Guararema FC, onde revelou craques como: Xina, Tanaquinha, Marcio, Zé Carniça, Larrúbia, Zé Luiz, Tião, Bananeira, Pedrinho, Eduardão, Alcides, Ivan e outros. Muitos iam ao campo para ver esses meninos, que jogavam na preliminar, e depois deixavam o estádio, pois achavam muito mais prazeroso assisti-los do que a equipe principal.

Nas festinhas de família, quando tinha alguma música tocando, era inevitável a percussão nas colheres, uma de costa para a outra, batendo na perna e na mão, fazendo um barulho peculiar e cantava uma musiquinha: “lero-lero-lero...” que ninguém sabia a letra.
Outra famosa batucadinha era feita com as mãos, entrelaçando os dedos e mexendo as munhecas para cima e para baixo, provocando um som, que só ele conseguia reproduzir.

Aos 77 anos, já totalmente grisalho, mas ainda com boa saúde, aposentou-se do futebol em uma linda festa, em uma partida da família x amigos, com direito a filmagem, reportagem, entrevistas e tudo o mais que tinha direito. Marcou um gol na cobrança de pênalti, aos 38 minutos do segundo tempo. Não faltou a famosa “plantada de bananeira” e a volta olímpica. Ainda participou de algumas partidas esparsas, mostrando as suas habilidades, apesar da sua idade já avançada.

No ano de 2007, aos 87 anos, o nosso ídolo maior foi convocado para compor a defesa da seleção celestial, juntando-se a tantos outros amantes do futebol, como tio João, meu pai Fernando, Beig, Ari, Juqueri, Zé Carniça, Dindim, Nelson Braga, Rubens, Tomateiro, Angelo e outros. Devem estar jogando para alegria de todos os anjos!

Um ser iluminado, um guerreiro que não temia o combate. Gentil, honesto, generoso e engraçado. O seu modelo será lembrado e seguido sempre pelos seus sobrinhos, filhos, netos e bisnetos. Percebe-se em todos os seus descendentes um pouco das várias qualidades suas, a se destacar o carinho uns com os outros, a educação, a retidão e o amor pelas pessoas, qualidades que estão passando para as futuras gerações.
Em 2012, por um decreto municipal, uma estrada, próxima ao sitio dos Moreira, passou a se chamar: ESTRADA MUNICIPAL JOSÉ MOREIRA FRANCO. Justa homenagem!
A vida não basta ser vivida, tem que deixar legados, sonhos e exemplos. Muito obrigado por tudo que o senhor nos deixou.

Saudades, meu querido tio José Moreira!

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

De quem é o ovo?

Os meus avôs maternos tiveram oito filhos (Deoclésia, Helena, Juvenal, Augusto, Bento, José, João e a minha mãe Ruth, a caçula), trinta e quatro netos, setenta bisnetos e trinta e cinco tataranetos.

Minha mãe praticamente morou a vida inteira na mesma casa onde nasceu. Saiu dali por uns doze anos, quando se casou, até que a minha avó adoeceu e, logo em seguida, o meu avô teve complicações de saúde. Como ela sempre foi muito prestativa, tomou a iniciativa de se mudar para essa casa, que sempre foi a sede principal do sítio, a fim de poder deles cuidar melhor.

O meu pai foi o seu primeiro e único namorado, pois naquele tempo os pais ainda influenciavam muito na escolha do futuro marido e o meu avô, sempre muito exigente, não deixava que ela namorasse qualquer um.
Demorou bastante tempo para que ela tivesse a coragem de anunciar a sua intenção de namoro. A princípio, o meu avô ficou um pouco ciumento, devido ao fato de ela ser a sua filhinha mais nova, já com mais ou menos 18 anos, mas acabou aprovando o relacionamento.

Durante quase quarenta anos, minha querida mãe cuidou de doentes: primeiramente, do meu avô, logo em seguida, da minha avó, do meu avô paterno, da minha tia Fininha e, por fim, do meu pai. Este, por conta de um AVC, ficou durante quinze anos na cama, pois perdeu totalmente os movimentos das pernas e de um braço. Também não falava, somente balbuciava alguns sons, mas ela entendia tudo o que ele queria comunicar.

Em nenhum momento reclama dessa sua vocação, muito pelo contrário, sempre agradeceu a Deus por tudo o que havia dado a ela. Inclusive comentava que preferia o meu pai sempre perto dela, mesmo que fosse naquela condição. Também fazia questão de ressaltar que tudo aquilo ainda era pouco em comparação aos muitos anos que recebeu, com tanto carinho, o seu cafezinho na cama todos os dias e uma rosa bem bonita em datas especiais.

A casa onde ela nasceu é até hoje o ponto de encontro de toda a família. À medida que os meus primos foram perdendo seus pais, pois quatro dos meus tios infelizmente não estão mais conosco, minha mãe foi sendo assumida também como a segunda mãe de vários deles. Sempre fomos muito próximos e essa união deve-se muito a Dona Ruth. Todas as festas natalinas nós fazemos questão de comemorar juntos. Não me recordo de ter passado um Natal longe de minha mãe.

Ela sabe os gostos de cada um e procura agradar a todos. Quando chega o Álvaro, filho do meu primo João, ela corre para preparar um chá preto, sem açúcar. Para a minha filha Rafaela, bolinho de chuva. A Lana é vegetariana e não come nenhum tipo de carne, mas nem se preocupa, pois sabe que sempre terá alguma coisa gostosinha para ela comer. Eu gosto do feijão com arroz e frango frito, assim como a minha filha Isabela. A bisneta Maria Lívia, ainda um bebê, já tem as suas preferências e também é servida como todos nós.

Enquanto mantínhamos um time de futebol só da família e jogávamos todos os domingos, pela manhã, os meus primos Laudenir, Zé Bueno, Pedrinho, João, Jorge, dentre outros, não iam para o jogo sem antes passar na cozinha da D. Ruth para tomar o seu delicioso café. Era como se fosse um ritual. Sem isso, o time não entrava em campo.

Os nossos aniversários são até hoje, em sua maioria, comemorados em sua casa. O bolo é colocado na mesa retangular, um dos vários móveis que são carinhosamente preservados desde o tempo em que meu avô casou-se com a minha avó. Canta-se, inicialmente a canção: “O aniversariante será abençoado, porque o Senhor vai derramar o seu amor...”, depois o “parabéns a você...”.

Praticamente todos os domingos, salvo compromissos inadiáveis, nós almoçamos juntos. Estão sempre presentes minha esposa Lana, as minhas filhas, Rafaela e Isabela, minha irmã Kika, meu cunhado Marcos, minha sobrinha Natália e minha sobrinha neta Maria Lívia. A alegria fica plena quando meu neto Lorenzo, as minhas filhas Fernanda e Juliana e os genros Angel, Paulo e Eric podem estar junto conosco. A família cresceu e praticamente não cabem todos à mesma mesa ao mesmo tempo.

Além disso, cuida de uma matilha de cachorros, em torno de meia dúzia, sem contar os gatos que por lá aparecem e vão ficando.

Como a sua casa fica na beira da estrada, aparecem andarilhos pedindo comida e ela sempre tem algo a oferecer. Alguns até ficam amiguinhos da família, como é o caso do “Papai & Mamãe” (mas isso fica para outra história).

O dia em que eu, com 19 anos, saí de casa para trabalhar foi muito marcante. No domingo à noite, ela ficou acordada até bem mais tarde que o normal, passou as minhas roupas e colocou-as com muito cuidado em uma mala de viagem, pois a partir de então eu ficaria a semana toda fora, uma vez que eu iria trabalhar na cidade de São Bernardo do Campo e estudava Administração de Empresas na faculdade em Mogi. No dia seguinte, levantou bem cedinho e, com todo o carinho desse mundo, sabendo do meu gosto, fez o delicioso virado de feijão com ovo para que eu tomasse com café, antes de sair. Embora soubesse que um dia eu teria que ir para o mundo e seguir uma profissão, aquele momento trazia um sentimento de separação, pois sempre fui obediente e muito apegado aos meus pais. Eu peguei a mala, coloquei-a no fusquinha e voltei para me despedir. Minha mãe estava chorando no cantinho da sala, abraçou-me bem forte e disse:

-Filho, que Deus o acompanhe e te dê muita força para enfrentar os desafios do mundo e discernimento para as coisas corretas na sua profissão. Trate todos com igualdade, como sempre fez, e tenha a certeza de que todos irão te respeitar...

Levei em meu coração e em minha mente esses ensinamentos. Choramos juntos e nos abraçados por um instante. Ela enxugou as lágrimas, abriu a porteira e ficou lá acenando para mim e repetindo:

-Vai com Deus, meu filho... Vai com Deus...

Fui me afastando e olhando pelo retrovisor a sua fisionomia de mãe preocupada. Fiz, nesse momento, uma promessa: iria por toda a vida lembrar-me de suas recomendações e seguir à risca os seus conselhos.

Com o meu primeiro salário comprei para ela um lindo faqueiro Tramontina, com 76 peças, cujo estojo de tampa basculável por meio de dobradiças, suportes especiais para fixação dos talheres e com encaixes especiais, guarda cuidadosamente até hoje. Os talheres foram colocados em uso.

Meu cunhado, Marcos, sempre comenta que sua sogra tem uma predileção exagerada quando se trata de agradar os meus gostos, o que não é bem verdade, uma vez que ela demonstra muito prazer em satisfazer a todos. Ele sempre conta uma história como exemplificação. Esta é a seguinte: houve uma época em que todos os dias eu e o Marcos voltávamos do serviço no mesmo horário e jantávamos juntos.

Sempre que chegávamos, já estava tudo arrumadinho para o jantar, só faltando preparar a mistura para que não esfriasse até sentarmos à mesa. Em um dia desses, ela foi à dispensa, pegou dois ovos de galinha caipira, comida que nós dois gostamos muito, colocou-os em um prato e veio para a cozinha prepará-los. Quando chegou à porta, desequilibrou e um dos ovos caiu e se espatifou no chão.

Ela, prontamente, falou:

- Puxa vida, Marcos, caiu o seu ovo!

Ele reclamou de imediato:

- Sogra, como a senhora sabe que aquele ovo que caiu foi o meu?

Ela, meio sem graça, comentou:

-ERA SEU SIM, O DO JOÃO FICOU AQUI NO PRATO.

Será que ele tem razão, quando até hoje, reclama disso?

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Meus tempos de Ginásio

Naquele dia, minha mãe acordou ainda mais cedo que o de costume, pois eu iria vestir pela primeira vez o uniforme do Ginásio Estadual Roberto Feijó e ela tinha que dar a última passadinha com o ferro de brasas, que demorava um pouco para acender. O uniforme era diferente de tudo o que eu já havia vestido até então: calça cáqui, camisa branca, gravata azul-marinho, meias brancas e sapatos pretos. No bolso da camisa estava bordada a logomarca da escola, GRF, em azul, e em baixo do G, que era bem maior, bordava-se um traço para a primeira série, dois para a segunda e assim por diante. Eu tinha 11 anos e acabava de sair do Grupo Escolar Getúlio Vargas.

Naquela época, o ensino era bem diferente. Começávamos na escola mista rural, onde todos estudavam em uma mesma sala de aula, do primeiro até o terceiro ano, com uma só professora. Depois, seguíamos para o Grupo Escolar para concluir o quarto ano, momento em que recebíamos um diploma de formatura do primário. Aprendíamos a tabuada de cor e salteado, todas as quatro operações matemáticas básicas (soma, subtração, divisão e multiplicação) e resolvíamos problemas básicos de aritmética. Tínhamos algumas noções de história do Brasil. Depois disso, íamos para o Ginásio, onde completávamos os estudos da primeira série até a quarta. Após diplomados do Ginásio, dever-se-ia escolher entre o Clássico ou o Científico: mais três anos antes do curso superior.

Para entrar no Ginásio, tínhamos que nos preparar por um ano e enfrentar o exame de admissão. Sentíamo-nos como vestibulandos: experimentei a mesma tensão mais tarde ao fazer o vestibular, talvez até um pouco menos, pois, com o exame do Ginásio, era a primeira vez que íamos enfrentar um mundo “mais adulto”.

Na escola estadual, o ensino diferenciava-se por ser bem mais puxado que o das particulares, estas freqüentadas por aqueles alunos que não conseguiam acompanhar o ritmo da pública. O ensino público tinha muita qualidade. Todos queriam estudar nessas escolas, as melhores. Se alguém não tirasse a média de 7, repetia de ano e se fosse reprovado por três anos, era jubilado, expulso. Somente as escolas particulares aceitavam alguém nessa condição.

Em meu primeiro dia de aula no Ginásio, estava muito feliz, porém muito assustado, pois vinha da roça, onde não havia nem luz elétrica, sendo a nossa única comunicação com as notícias do mundo o famoso radinho de pilha “Philips”. Eu me esforçava muito, pois não havia outra maneira de eu me sobressair, já que, além de muito caipira, eu era o menorzinho de toda a turma, aquele que tinha que sentar na primeira carteira, sendo assim o primeiro nas famosas chamadas orais. Isso sem contar a timidez natural de um garoto dessa idade, enfrentando o que era para mim o desafio da “cidade grande”.

A classe era composta de 53 alunos, somente meninos, pois ainda não existiam as classes mistas. As meninas ficavam em uma sala ao lado da nossa.

Outra diferença muito marcante era a quantidade de professores diferentes, uma vez que eu tinha tido apenas quatro professoras na vida. A partir de então, teria um para cada disciplina, tantos que eu até confundia no início, tendo demorado um pouco para familiarizar-me com a planilha dos horários de aulas. Além disso, havia todo o tratamento formal. Aluno não falava alto com professores e nem retrucava qualquer ordem. Ninguém chamava professor de tia ou tio. Referíamo-nos a eles como senhor e senhora. Respeito total. Ninguém se retirava da sala de aula sem pedir e só saía se a autorização fosse concedida. Quando o professor entrava na sala, silenciava-se todo e qualquer barulho, reinando o silêncio e o respeito, símbolos de autoridade. Era como se eles fossem os nossos segundos pais em relação ao poder que tinham sobre nós.

Todos os dias, antes de entrarmos para a sala de aula, perfilávamos em frente à bandeira brasileira, cada série em sua fila. Só entrávamos para a sala de aula, continuando em fila, depois de cantarmos o Hino Nacional.

Havia o Canto Orfeônico, onde se aprendia a ler as notas musicais, a compreender as figuras no pentagrama em função de sua duração (colcheias, semi colcheias, fusas, etc.), a escrever as claves de Sol, a distinguir sustenido de bemol. Além disso, era nesta aula que treinávamos o hino, durante todo o ano, estudando minuciosamente cada estrofe e o sentido de cada palavra.

Aos poucos, fui entendendo aquela nova dinâmica. Tive o privilégio de ter vários mestres, de quem até hoje me recordo com muito carinho, cujos ensinamentos, tanto de conhecimento quanto de cidadania, ajudaram e muito na minha formação e de tantos outros amigos. Era um time de profissionais da melhor qualidade, apresentado o Sr. Alfredo Daher, nosso diretor, muito exigente e disciplinador; o Sr. Lineu, de Química; o Sr. Cláudio, de Matemática; o Sr. Olímpio, de Geografia; o Sr. Valdomiro, de História; a D. Marli, de Canto Orfeônico; o Sr. Quinho, de Artes Manuais; a D. Rosa, de Português e o Sr. Paulo de Tarso, de Educação Física, além do Sr. Josias e D. América, queridos secretários, e D. Iracema, a servente.

De todas as matérias, havia uma que me encantava: o Francês. Eu achei demais aquela forma de pronunciar as palavras fazendo bico e arranhando a garganta. O nosso professor, um educador fantástico chamado Paulo Afonso Daher, filho do diretor, tinha uma didática muito peculiar. Ele chegava à porta da classe e enquanto não estivesse tudo no mais absoluto silêncio, não adentrava. Moço muito alto, forte, com um bigode preto enorme. Raramente sorria e sua fisionomia fechada nos fazia ainda mais atentos à matéria.

Quando todos se levantavam para recebê-lo, ele falava bem alto:

- Bonjour.

Todos respondiam em um tom uníssono:

- Bonjour professeur.

Entrava na sala e iniciava a chamada. Chamava cada aluno pelo número e este deveria ficar em pé, respondendo em francês com uma frase. A cada semana essas sentenças eram trocadas, passavam para outro aluno, até que todos soubessem de cor todas as frases da classe.

Ele falava:

- Numéro un!

O aluno correspondente ao número um, respondia:

- Les deux hits qui colle jusqu'à. (Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura)

Ele falava:

- Numéro deux!

O número dois respondia:

-Mieux vaut un oiseau dans la main vaut mieux que deux tu l’auras. (Mais vale um pássaro na mão do que dois voando).

Ele falava:

- Numéro trois!

O número três respondia:

-La voix du peuple est la voix de Dieu. (A voz do povo é a voz de Deus)

Ao final do terceiro ano tivemos que recitar a fábula “Le Corbeau et le Renard” (O Corvo e a Raposa), de Jean de La Fontaine. Não errei nenhuma frase. Tirei nota máxima. Decorei com tanta dedicação que ainda recito de cor. De tanto eu repetir essa história em casa para as minhas filhas, a Rafaela aprendeu também e sempre repete comigo, com seu sotaque “francês mogiano”:


Maître Corbeau, sur un arbre perché,
(O senhor corvo numa árvore empoleirado)
Tenait en son bec un fromage.
(Segurava no seu bico um queijo)
Maître Renard, par l'odeur alléché,
(A senhora raposa, pelo odor atraída)
Lui tint à peu près ce langage:
(Dirigiu-se-lhe mais ou menos com estas palavras:)
"Hé ! bonjour, Monsieur du Corbeau.
(Olá! Bom-dia, senhor corvo)
Que vous êtes joli ! que vous me semblez beau !
(Como sois bonito!Como me pareces belo!)
Sans mentir, si votre ramage
(Sem mentir, se o vosso gorjeio)
Se rapporte à votre plumage,
(For semelhante à vossa plumagem,)
Vous êtes le Phénix des hôtes de ces bois.
(" Vós sois a fénix dos habitantes destes bosques.)
A ces mots le Corbeau ne se sent pas de joie
(Com estas palavras o corvo não cabe em si de contente;)
Et pour montrer sa belle voix,
(E para mostrar a sua bela voz,)
Il ouvre un large bec, laisse tomber sa proie.
(Ele abre o grande bico e deixa cair a sua presa.)
Le Renard s'en saisit, et dit : "Mon bon Monsieur,
(A raposa apodera-se dela e diz: "Meu bom senhor,)
Apprenez que tout flatteur
(Aprendei que todo o bajulador)
Vit aux dépens de celui qui l'écoute:
(Vive às custas daquele que o escuta:)
Cette leçon vaut bien un fromage, sans doute.
(" Esta lição vale bem um queijo, sem dúvida.")
Le Corbeau, honteux et confus,
(O corvo, envergonhado e confuso,)
Jura, mais un peu tard, qu'on ne l'y prendrait plus.
(Jurou, mas um pouco tarde, que não o apanhariam mais)

Bons tempos, aqueles! Talvez muito mais difíceis que os dias de hoje, em vários aspectos, porém muito mais charmosos. Havia menos violência, mais solidariedade e, principalmente, muito mais respeito aos educadores. Saudades!