quinta-feira, 14 de novembro de 2013

A primeira vez que vi o mar

A minha mãe estava colocando o último canecão de água na bacia para temperar a água quente para o meu banho, quando o meu pai chegou e disse que não precisava ter pressa, pois a Ester não iria à aula naquele dia. Tinha ouvido no rádio que haveria uma revolução. Era o golpe militar de 1964 que culminou na repressão militar e acarretou profundas modificações na organização política do país: ditadura militar, luta armada e os governos militares.
Esses fatos nós não acompanhamos, pois ouvíamos muito pouco as notícias. A única comunicação com as ocorrências do mundo chegavam através do rádio que muito pouco falava a respeito desse período negro de nossa história.
A nossa rotina consistia em ir à escola, participar das missas, frequentar as aulas de catecismo, que eram ministradas pelo meu tio Juvenal, e as brincadeiras normais de crianças daquela idade. Além da cidade de Guararema, conhecíamos somente Mogi das Cruzes e Jacareí.
Quando íamos à igreja, eu e o meu primo Antonio Luiz, servíamos a celebração como coroinhas, isso pelo menos uma vez por semana e preferencialmente as dominicais.
O padre João Rosa era como um ente querido da família, pois chegou à paróquia logo após a sua ordenação na Catedral de São Paulo. Antes, havia ficado quatro anos em Roma, e logo passou a frequentar as nossas casas. Sempre muito cordial, carinhoso, gentil, mas também muito exigente. Toda a liturgia era ensaiada; desde a procissão de entrada, os gestos e atitudes corporais, a forma de conduzir o evangeliário, como postar as mãos, como se ajoelhar, jeito de se locomover no altar, tudo cuidadosamente planejado.
O seu zelo com as nossas vestimentas passavam pelo sapato engraxado, cabelos cortados e penteados, o comprimento exato da túnica vermelha, a colocação perfeita da sobrepeliz, na cor branca.
Nas procissões íamos à frente e escolhia-se alguém do grupo  para ser o cruciferário, que é quem sempre conduz a Cruz Processional, cruz alta formada por uma haste e pelo crucifixo.
Na Sexta-feira da Paixão, a procissão do Senhor Morto era bem elaborada, com a presença da figura de Maria, Mãe de Jesus, Maria Madalena, Verônica, São João apóstolo e outros.
A procissão seguia pelas principais ruas da cidade, em silêncio, e com cânticos piedosos. Todos acompanhavam em silêncio, como se fosse um enterro real.
Eu e o Antonio Luiz sempre nos dispúnhamos a tocar as matracas, instrumento e sinalizador, feito em madeira com um pedaço de ferro curvilíneo que quando sacudido se produz som.
Após a procissão, iniciava o beijo a imagem do senhor morto e os coroinhas cuidavam de organizar as filas, muito longas, pois nesse dia muitas pessoas tinham o hábito de ir à igreja, mesmo os de menor devoção religiosa.
O Padre João Rosa, sabendo de nossa pouca oportunidade de sair para outras localidades, certo domingo, após a missa perguntou:
- Quem daqui do grupo já foi à praia?
Apenas o Raul e o Manoel ergueram as mãos.
Ele continuou já de uma forma mais animada:
- Então pessoal, no próximo feriado de 1.o de maio, vamos à Santos!

Foi uma alegria geral. Todos ficaram eufóricos e comentando uns com os outros o quanto seria bacana ir à praia. Menos eu e o Antonio Luiz, pois sentimos um misto de alegria e medo de que os nossos pais não permitissem.
Mas estávamos enganados, pois eles confiavam muito no padre e permitiram, desde que tomássemos todos os cuidados com a praia, pois seria um território desconhecido também para eles.
Naquele feriado, bem cedinho, saímos de bicicleta, eu, o Antonio Luiz e o tio Juvenal, em direção à praça da matriz. Porém, antes, a tia Odete, que também nunca tinha ido ao litoral, recomendou bastante para que não nos dispersássemos do grupo e que, principalmente, quando ouvíssemos um barulho muito alto: a onda! Vindo em direção ao banhista ela poderia engolí-lo. Fomos com essa informação na cabeça: “todo o cuidado com o tal barulho alto”.
Chegando à praça, a perua Kombi azul do Sr. Carlos Benites já estava nos esperando. Quando chegaram os demais, foram tomando seus acentos. Após uma oração do Pai Nosso e Ave-Maria, seguimos viagem.
Na frente, além do motorista, o Sr. Carlos, sentaram-se o Padre João e o sacristão Armindo. No banco do meio, o Manoel, o Raul e o Luiz Gonzaga. No banco de trás, eu, o Antonio Luiz e o Carlos Augusto.
Rumamos assim pela estrada de Mogi das Cruzes, Índio Tibiriçá em Suzano e Via Anchieta no ABC Paulista. Quando aproximamos da Serra do Mar, todos ficaram maravilhados com aquela paisagem, um misto de neblina, alguns raios de sol, muitos túneis, e, lá embaixo, aquele mar azul. Quase nem falávamos para não perder nenhum detalhe. Tudo muito incrível, as curvas, as florestas, as cachoeiras, tudo novidade.
Quando chegamos à orla, praia José Menino, o Sr. Carlos estacionou a Kombi próximo a areia, o padre fez as últimas recomendações e, como já estávamos com shorts embaixo das roupas, as tiramos. E antes de sair em disparada para a água, ainda pudemos observar aquele cenário magnífico, de um lado a imensidão do mar, e de outro, o deslumbrante visual dos arranha-céus e as montanhas da Serra do mar.
Uns provavam da água para ver se realmente estava salgada, outros rolavam na areia. O Antonio Luiz estava meio preocupado com aquilo tudo e me chamou de lado e disse:
- Primo, lembre o que a minha mãe falou: “se ouvir um barulho alto é a onda vindo engolir a gente”.
Mesmo temerosos, embora soubéssemos nadar bem, pois o ribeirão era a nossa segunda casa, nos benzemos, molhamos os pulsos e a moleira, e entramos água adentro.
Tudo muito divertido, o grupo sempre juntos, todos achando aquilo muito diferente, até o padre, nos observando atentamente a alguma distância, estava de calção de banho. Estávamos um pouco espantados, pois nunca antes o vimos sem a batina preta.
Ficamos ali mais ou menos uns vinte minutos. Dali a pouco, ouvimos um barulho ensurdecedor vindo das águas do mar. Eu e o Antonio Luiz nos entreolhamos e no mesmo momento ele saiu em disparada para a areia, pois na sua cabeça era o tal som que a sua mãe tanto recomendou. Saiu pulando as ondas, tropeçando nos colegas, caindo e levantando, com uma fisionomia muito assustada. Foi quando eu percebi que esse som vinha de uma buzina de um navio cargueiro que estava saindo do cais, passando pela orla, indo em direção ao alto mar.
Corri até o meu primo e tentei acalmá-lo, mas já era tarde: a diarréia e a dor de barriga, pelo medo, chegaram de imediato e a única alternativa foi retornar ao mar para cuidar de limpar o ocorrido.
Não contamos para ninguém e o resto do dia foi muito proveitoso: fomos ao cais do porto, atravessamos até a ilha de Guarujá de Ferry Boat, jogamos futebol na areia fina, e terminamos o passeio em um convento de freira, onde habitava uma irmã do Padre João, que também era freira, e pertencia a uma Congregação daquela localidade.
A atuação do Padre João Rosa naquela comunidade foi essencial em nossa educação e formação, tanto religiosa quanto laical (leigos).
Ficou durante aproximadamente sete anos na Paróquia de Nossa senhora da Escada e São Benedito, em Guararema, até o ano de 1969. Saiu para assumir como Pároco em Sabaúna, indo posteriormente trabalhar em Jacareí. Retornou depois de algum tempo à Diocese de Mogi das Cruzes, desenvolvendo inúmeros trabalhos pastorais na região.
O retorno, não tenho muito a contar, pois devido ao cansaço, pelo dia especial,  dormimos na saída e só acordamos na chegada a Guararema.

Toda vez que retorno à cidade de Santos, recordo-me com carinho e saudade da minha primeira vez que vi o mar.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

O Craque na vida e na bola

O meu tio José Moreira viveu a infância, adolescência e juventude em condições normais.
Como membro de uma família simples, mas de ótima formação ética, desfrutava de tudo o que lhe fora oferecido, principalmente a educação que recebeu de seus pais, cercada de muito carinho, mas também muito enérgica, o que norteou toda a sua existência.

Estudou em uma escola rural até o terceiro ano primário, o que era comum aos meninos, pois as meninas nem sempre frequentavam as escolas naquela época. Desde cedo, já despontava como alguém muito inteligente. Tinha interesse muito especial pelos negócios e amava o futebol. Ainda adolescente, trabalhava na roça plantando verduras, legumes e chegou até a desenvolver atividades em carvoaria, junto com o seu irmão, o tio João.

Conheceu na juventude Ana, tia de meu pai, que morava no centro da cidade de Guararema. Logo fizeram planos para se casar. Assim que realizaram este sonho, passaram a morar no prédio que o meu avô havia construído com a finalidade de ser um botequim , mas que a partir de então passou a funcionar como “Armazém de Secos e Molhados São José”, pois o tino empreendedor de tio José mostrava ser essa a melhor atividade no período.

Eles conciliavam as plantações de hortaliças que vendiam no Mercadão de São Paulo com as atividades desse comércio. A tia Ana revezava entre os afazeres da casa e o atendimento ao balcão.

Ali nasceram os primeiros filhos (Laerte, Alaide e Lídia) e, à medida que a família cresceu, ampliou-se a construção com uma casa em anexo, mais ampla, que contava com dois quartos (no porão), além de uma sala grande e uma cozinha. Da sala para o andar do armazém, ligando os dois ambientes, havia uma escada com 13 degraus de alvenaria. O banheiro ou privada, como era costume se chamar, ficava há uns dez metros da entrada da cozinha, mais próximo ao rio para que ali fossem despejados os dejetos.

Como sentiu o potencial de comerciante de sucesso de meu pai Fernando, Tio José percebeu a possibilidade de deixar esse armazém da roça aos seus cuidados. Estabeleceu-se na cidade, mudando-se para lá, mais precisamente para a praça do coreto, onde nasceram mais dois filhos, o Laudenir e a caçula Francisca, conhecida por todos como Kika. O meu pai, assim que ficou noivo de minha mãe, adquiriu o comercio e o manteve até a sua aposentadoria.

As nossas famílias sempre foram muito próximas, pois a partir do casamento de meus tios, o meu pai, antes somente um sobrinho, passou a ser também cunhado deles. Fomos criados e educados todos juntos e os primos eram e sempre serão como irmãos de sangue. Sempre consideramos os tios como nossos segundos pais!


Para a sua época, o meu tio José Moreira era muito avançado e tinha uma visão da vida muito apurada. Foi um homem sempre à frente do seu tempo. Mirou o futuro como ninguém! Estava sempre na vanguarda, pioneiro em mudar-se da roça para a cidade, deixando aquela vidinha tranqüila da pequena horta e da criação de porcos e galinhas para os desafios urbanos. Foi também o primeiro da família a dirigir e a tirar a Carta de Habilitação, sendo que ficou atrás do volante até os seus 85 anos de vida. Os seus carros foram de pequenos veículos como Fuscas, Opalas, Brasílias, caminhonetes, até grandes, como caminhões. Chegou a fazer viagens interestaduais, transportando madeiras e cargas diversas. Era curioso perceber que sempre nos porta-malas dos carros continham pelo menos um jogo de camisas de futebol, bola, bombas, apito, cartão vermelho e amarelo e rede para o gol, além de vários pares de chuteiras e meias.

Em sua casa, assistimos à primeira televisão, uma novidade para poucos privilegiados. Também foi o primeiro a possuir eletrodomésticos, como geladeira, liquidificador e, especialmente, chuveiro elétrico, onde tomávamos banhos quentes e fazíamos a maior festa.

Teve uma vida inteira de uma conduta exemplar. Impossível alguém ter qualquer questionamento em relação a sua postura, seja nos negócios, no âmbito familiar ou, especialmente, no esportivo (quando se pensa em meu tio, é impossível não associá-lo ao futebol). Ainda na juventude, juntamente com os seus irmãos Augusto, João, Juvenal e Bento, com a anuência de meu avô Antonio Moreira, formaram o primeiro campo de futebol daquelas redondezas, fundando o 77 FC.

Logo eles começaram a juntar amigos até organizar um time, chamado então de “quadro”.
As posições dos jogadores em campo também tinham outro nome. No gol ficava o goalkeeper (lê-se golkiper). Havia ainda os alfa direito e esquerdo, os beque de espera e de avanço, o center alfa e o center four. Por um longo período, o meu pai foi o keeper, o tio João, o beque de avanço, o tio Bento, alfa esquerdo, o tio Augusto, ponta-esquerda, o habilidoso tio Juvenal (craque de recursos avançadíssimos para aquela realidade), o meia-esquerda e o sempre seguro tio José, o center alfa. Podiam-se chamar Irmãos Moreira, mas manteve-se sempre como 77 FC.

Esse campo existe até hoje, na beira da estrada, sempre com a grama bem aparada pelos carneiros do Seu Zé Lopinho e é um ponto de referência daquela comunidade. Certamente, não existe na região um campo com tanta longevidade.

A camisa mais tradicional do time era listrada, tricolor (branca, vermelha e preta), mas houve também ao longo se sua história outras variações, como toda azul e também branca, sempre com o distintivo do clube bordado no peito.
O tio Zé Moreira não era de fazer muitos gols, o que se justifica pelo fato de que na época aquele que jogasse na defesa não ultrapassava o meio do campo, mas arriscava algumas cabeçadas nos escanteios e fez as suas marcas.

Suas conversas invariavelmente acabavam em algum “causo” relativo à bola. Era um habilidoso contador de histórias. Seu time de coração era o Palmeiras, embora tivesse ido poucas vezes ao estádio, pois preferia acompanhar pela televisão. Acreditava que jogar profissionalmente era muito fácil, pois achava que não tinha a mesma pegada e rapidez da várzea. Sempre se lembrava dos inúmeros jogos passados, incontáveis lances e até do placar de várias partidas. Falava com desenvoltura dos detalhes de jogos ocorridos há décadas.

Houve um jogo em especial: encontraram-se o EC 77 e o Ipiranga FC no campo do Guararema FC. Lá pelos 20 minutos de partida, atearam fogo no capim gordura que havia em abundância nas cercanias do campo e, à medida que ia aumentando o fogo, uma nuvem de fumaça começou a pairar sobre o gramado, tornando praticamente impossível de enxergar mais de um metro de distância, mas o juiz nada de parar o jogo. O placar encontrava-se naquele momento 1 x 1 e ninguém queria perder esse clássico. Só percebiam a bola quando esbarravam nela. Dizia a lenda que o centroavante da equipe adversária teria carregado a bola em baixo do braço e colocado-a nos fundos da rede. Chegou um momento em que todos pararam e, às lágrimas, ficaram sentados no barranco esperando que a fumaça se dissipasse. Depois de algum tempo, veio uma providencial ventania e, com a visão melhorada, reiniciaram a partida que terminou em
3 x 2 para o 77 FC.

Tio José gostava tanto de jogar bola que a sua vida e o seu dia-a-dia não fazia tanto sentido se não estivesse atuando. Contava um episódio que em certa altura da sua juventude pegou um berne na cabeça, muito comum aos meninos, que infeccionou tanto que nem podia se mexer, pois doía demais. Mesmo assim, foi ao trabalho cortar cana com o tio Augusto. Como ele não podia se esforçar-se demais, ficava somente empilhando as canas cortadas para depois fazer um feixe e poder transportar para perto do engenho. O tio Augusto cortava e atirava uma por vez para ele. Em uma dessa operação, errou a jogada e a cana acertou a cabeça do tio José, bem no calombo do berne que imediatamente furou, jorrando para longe toda a inflamação. Imediatamente, como se não estivesse sentindo nenhuma dor, deu um forte grito de alivio: “Graças a Deus, domingo já vou poder jogar bola”.

Além do amor que tinha em jogar pelo 77 FC, defendeu os times do E.C Bellard , Anjoma FC, Capela D’ Ajuda FC, EC Merendá e Freguesia da Escada FC.
Preparou o primeiro campo no Bairro do Ipiranga, o que ainda era de terra, hoje Estádio Municipal José Luiz Gonçalves da Silva.
Junto com o seu filho Laerte, atuou como técnico no melhor time juvenil do Guararema FC, onde revelou craques como: Xina, Tanaquinha, Marcio, Zé Carniça, Larrúbia, Zé Luiz, Tião, Bananeira, Pedrinho, Eduardão, Alcides, Ivan e outros. Muitos iam ao campo para ver esses meninos, que jogavam na preliminar, e depois deixavam o estádio, pois achavam muito mais prazeroso assisti-los do que a equipe principal.

Nas festinhas de família, quando tinha alguma música tocando, era inevitável a percussão nas colheres, uma de costa para a outra, batendo na perna e na mão, fazendo um barulho peculiar e cantava uma musiquinha: “lero-lero-lero...” que ninguém sabia a letra.
Outra famosa batucadinha era feita com as mãos, entrelaçando os dedos e mexendo as munhecas para cima e para baixo, provocando um som, que só ele conseguia reproduzir.

Aos 77 anos, já totalmente grisalho, mas ainda com boa saúde, aposentou-se do futebol em uma linda festa, em uma partida da família x amigos, com direito a filmagem, reportagem, entrevistas e tudo o mais que tinha direito. Marcou um gol na cobrança de pênalti, aos 38 minutos do segundo tempo. Não faltou a famosa “plantada de bananeira” e a volta olímpica. Ainda participou de algumas partidas esparsas, mostrando as suas habilidades, apesar da sua idade já avançada.

No ano de 2007, aos 87 anos, o nosso ídolo maior foi convocado para compor a defesa da seleção celestial, juntando-se a tantos outros amantes do futebol, como tio João, meu pai Fernando, Beig, Ari, Juqueri, Zé Carniça, Dindim, Nelson Braga, Rubens, Tomateiro, Angelo e outros. Devem estar jogando para alegria de todos os anjos!

Um ser iluminado, um guerreiro que não temia o combate. Gentil, honesto, generoso e engraçado. O seu modelo será lembrado e seguido sempre pelos seus sobrinhos, filhos, netos e bisnetos. Percebe-se em todos os seus descendentes um pouco das várias qualidades suas, a se destacar o carinho uns com os outros, a educação, a retidão e o amor pelas pessoas, qualidades que estão passando para as futuras gerações.

A vida não basta ser vivida, tem que deixar legados, sonhos e exemplos. Muito obrigado por tudo que o senhor nos deixou.

Saudades, meu querido tio José Moreira!

Meu avô, meu mestre!

Com olhar calmo, sempre mirando o horizonte, pausadamente comentava: como a natureza é bela e sábia! Nascido por volta de 1890, tinha idéias revolucionárias e extremamente avançadas para o seu tempo. Preocupava-se com as nascentes e com a poluição do solo. Quando ainda ninguém falava sobre reciclagem, o meu avô materno Antonio Moreira já separava os vidros, os alumínios, os papelões, não atirava na terra nada que pudesse contaminá-la e fazia questão de explicar para todos nós que o solo tinha que ser muito bem cuidado, senão seria impossível as plantações vingarem. Os terrenos eram por ele muito bem cuidados para que não houvesse erosões. Também, dizia que o bem mais preciso do planeta seria um dia a água potável. Não tinha nenhuma escolaridade formal, mal e mal escrevia o seu nome e soletrava apenas algumas palavras, mas tinha uma vivência e uma inteligência raras. Na sua humildade de homem sem formação acadêmica, era um sábio. Era severo na educação dos filhos e, por conseguinte, dos netos. Tinha uma fé inabalável e fazia questão de iniciar a todos no temor a Deus. Adorava tocar viola e assistir aos jogos na beira do campo de futebol. Para ele, compadre era parente e amizade, um tesouro.


De sorriso contido, tinha um semblante sério, parecendo uma pessoa brava, mas no íntimo era muito amável e divertido.

Já havia nascido sete dos seus oitos filhos, Deoclésia, João, Helena, José, Augusto, Juvenal e Bento, quando adquiriu um sítio às margens da estradinha de terra que era a única ligação rodoviária entre São Paulo e Rio de Janeiro. Foi barganhado por um casinha, cuja propriedade passou a ser do Sr. Adelino Lima, com localização próxima às margens do rio Paraíba, em Guararema. Naquela época, minha tão querida cidade era detentora de meia dúzia de ruas, ainda sem pavimentação, e de população bem pequena. No sítio que adquiriu, construiu a casa sede e mudou-se para lá, onde nasceu a sua filha mais nova, minha mãe Ruth, que mora nesta mesma casa até os dias de hoje.

De todas as suas dezenas de netos, eu tive o privilégio de ter convivido mais tempo ao seu lado, pois, além de ter morado até os dez anos bem pertinho de sua casa, começamos a morar juntos quando mudamos para sua casa do sítio no momento em que minha avó Gasparina adoeceu (por conta de um AVC). Com a mudança, minha mãe pôde cuidar dela até os seus últimos dias.

Quando saíamos para caminhar entre os arvoredos, a explicação sobre as plantas era muito elaborada. Para que servia um guatambu, o que era uma árvore mamica de porca, um jacaré, uma pata de vaca, um ingazeiro, uma aroeira, uma embaúba, uma figueira, um jacarandá, uma quaresmeira, Ipês de todas as cores e tantos outros esclarecimentos estavam presentes nas conversas. Também, explicava detalhadamente como encabar uma foice, uma enxada, um machado, embora soubesse perfeitamente que talvez nunca fôssemos utilizar esses utensílios para a nossa profissão.

Exímio carpinteiro, tinha muitas habilidades manuais. Era muito organizado e seu lema era: “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. As suas ferramentas eram rigorosamente guardadas em suas devidas prateleiras e todas permaneciam minuciosamente afiadas e bem cuidadas. Mantemos até hoje muitas de suas peças no sítio, confeccionadas por ele próprio, como roda de ralar mandioca, fuso para prensa canga, canzis e moenda de cana de açúcar.

Os passeios a cavalo eram uma verdadeira aula, pois ele me ensinava desde como preparar a montaria até a maneira correta de conduzir o animal. Nos passeios, era sempre elegante na vestimenta: usava um chapéu de feltro marrom da marca Cury, camisa xadrez, calça cáqui e botinas de couro. Cabelo sempre bem penteado, barba feita e bigode aparado. Um relógio de bolso e óculos para leitura compunha o seu visual.

Quando nós ainda morávamos na casa do armazém, do outro lado da estrada, pelo menos uma vez na semana o meu avô e a minha avó iam nos visitar. Era a maior alegria! De tantas e tantas passagens, a seguinte me marcou profundamente. Eu tinha por volta de seis anos e minha irmã Kika, três. Numa noite, ao ouvir o barulho deles chegando, fiquei tão contente que joguei uma girafinha, meu primeiro e único brinquedo, para o alto. Ela chocou-se com o suporte que aparava as panelas, localizado em cima do fogão à lenha, quebrando-o e fazendo com que todos os utensílios caíssem ao chão. Uma delas, a mais cobiçada de todas, a de pressão, teve seu cabo quebrado. Lembre-se de que, naquele tempo, uma panela de pressão era a maior raridade.

Nessas visitas, ele sentava-se numa tripeça de madeira, bem baixinha, e ali ficávamos juntos brincando de cavalinho com meu brinquedo. Montava os arreios na girafinha e explicava, detalhe por detalhe, como encilhar um animal, fazer arreios, preparar o couro e trançar um laço. Era uma verdadeira aula. Eu tinha a maior curiosidade de aprender sobre tudo, característica bem comum às crianças, principalmente numa época em que a comunicação era muito restrita aos contatos e às relações interpessoais. Até hoje guardo com muito zelo esse meu primeiro brinquedo. Minhas filhas Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela brincaram com a girafinha e agora o meu neto Lorenzo, de três anos, tem por ela o maior carinho. Aliás, ele acha que é dono dela, mas sempre na hora do fim da brincadeira ele a guarda no lugar especial a ela reservado em minha casa e diz que ele não leva embora porque eu tomo conta dela.

A girafinha foi o meu primeiro brinquedo e, sem dúvida, é o objeto que mais me faz lembrar do meu querido avô, aquele que foi e será meu eterno mestre.

Muitos da sua descendência tem um pouco dele, os filhos, os netos, os bisnetos e tataranetos, o que nos faz uma família muito unida e diferenciada.

Convivi intensamente com ele até final, nos anos 70, e estive ao seu lado nos seus últimos instantes de vida. Quantas saudades!