terça-feira, 5 de novembro de 2013

Meu avô, meu mestre!

Com olhar calmo, sempre mirando o horizonte, pausadamente comentava: como a natureza é bela e sábia! Nascido por volta de 1890, tinha idéias revolucionárias e extremamente avançadas para o seu tempo. Preocupava-se com as nascentes e com a poluição do solo. Quando ainda ninguém falava sobre reciclagem, o meu avô materno Antonio Moreira já separava os vidros, os alumínios, os papelões, não atirava na terra nada que pudesse contaminá-la e fazia questão de explicar para todos nós que o solo tinha que ser muito bem cuidado, senão seria impossível as plantações vingarem. Os terrenos eram por ele muito bem cuidados para que não houvesse erosões. Também, dizia que o bem mais preciso do planeta seria um dia a água potável. Não tinha nenhuma escolaridade formal, mal e mal escrevia o seu nome e soletrava apenas algumas palavras, mas tinha uma vivência e uma inteligência raras. Na sua humildade de homem sem formação acadêmica, era um sábio. Era severo na educação dos filhos e, por conseguinte, dos netos. Tinha uma fé inabalável e fazia questão de iniciar a todos no temor a Deus. Adorava tocar viola e assistir aos jogos na beira do campo de futebol. Para ele, compadre era parente e amizade, um tesouro.


De sorriso contido, tinha um semblante sério, parecendo uma pessoa brava, mas no íntimo era muito amável e divertido.

Já havia nascido sete dos seus oitos filhos, Deoclésia, João, Helena, José, Augusto, Juvenal e Bento, quando adquiriu um sítio às margens da estradinha de terra que era a única ligação rodoviária entre São Paulo e Rio de Janeiro. Foi barganhado por um casinha, cuja propriedade passou a ser do Sr. Adelino Lima, com localização próxima às margens do rio Paraíba, em Guararema. Naquela época, minha tão querida cidade era detentora de meia dúzia de ruas, ainda sem pavimentação, e de população bem pequena. No sítio que adquiriu, construiu a casa sede e mudou-se para lá, onde nasceu a sua filha mais nova, minha mãe Ruth, que mora nesta mesma casa até os dias de hoje.

De todas as suas dezenas de netos, eu tive o privilégio de ter convivido mais tempo ao seu lado, pois, além de ter morado até os dez anos bem pertinho de sua casa, começamos a morar juntos quando mudamos para sua casa do sítio no momento em que minha avó Gasparina adoeceu (por conta de um AVC). Com a mudança, minha mãe pôde cuidar dela até os seus últimos dias.

Quando saíamos para caminhar entre os arvoredos, a explicação sobre as plantas era muito elaborada. Para que servia um guatambu, o que era uma árvore mamica de porca, um jacaré, uma pata de vaca, um ingazeiro, uma aroeira, uma embaúba, uma figueira, um jacarandá, uma quaresmeira, Ipês de todas as cores e tantos outros esclarecimentos estavam presentes nas conversas. Também, explicava detalhadamente como encabar uma foice, uma enxada, um machado, embora soubesse perfeitamente que talvez nunca fôssemos utilizar esses utensílios para a nossa profissão.

Exímio carpinteiro, tinha muitas habilidades manuais. Era muito organizado e seu lema era: “um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. As suas ferramentas eram rigorosamente guardadas em suas devidas prateleiras e todas permaneciam minuciosamente afiadas e bem cuidadas. Mantemos até hoje muitas de suas peças no sítio, confeccionadas por ele próprio, como roda de ralar mandioca, fuso para prensa canga, canzis e moenda de cana de açúcar.

Os passeios a cavalo eram uma verdadeira aula, pois ele me ensinava desde como preparar a montaria até a maneira correta de conduzir o animal. Nos passeios, era sempre elegante na vestimenta: usava um chapéu de feltro marrom da marca Cury, camisa xadrez, calça cáqui e botinas de couro. Cabelo sempre bem penteado, barba feita e bigode aparado. Um relógio de bolso e óculos para leitura compunha o seu visual.

Quando nós ainda morávamos na casa do armazém, do outro lado da estrada, pelo menos uma vez na semana o meu avô e a minha avó iam nos visitar. Era a maior alegria! De tantas e tantas passagens, a seguinte me marcou profundamente. Eu tinha por volta de seis anos e minha irmã Kika, três. Numa noite, ao ouvir o barulho deles chegando, fiquei tão contente que joguei uma girafinha, meu primeiro e único brinquedo, para o alto. Ela chocou-se com o suporte que aparava as panelas, localizado em cima do fogão à lenha, quebrando-o e fazendo com que todos os utensílios caíssem ao chão. Uma delas, a mais cobiçada de todas, a de pressão, teve seu cabo quebrado. Lembre-se de que, naquele tempo, uma panela de pressão era a maior raridade.

Nessas visitas, ele sentava-se numa tripeça de madeira, bem baixinha, e ali ficávamos juntos brincando de cavalinho com meu brinquedo. Montava os arreios na girafinha e explicava, detalhe por detalhe, como encilhar um animal, fazer arreios, preparar o couro e trançar um laço. Era uma verdadeira aula. Eu tinha a maior curiosidade de aprender sobre tudo, característica bem comum às crianças, principalmente numa época em que a comunicação era muito restrita aos contatos e às relações interpessoais. Até hoje guardo com muito zelo esse meu primeiro brinquedo. Minhas filhas Fernanda, Juliana, Rafaela e Isabela brincaram com a girafinha e agora o meu neto Lorenzo, de três anos, tem por ela o maior carinho. Aliás, ele acha que é dono dela, mas sempre na hora do fim da brincadeira ele a guarda no lugar especial a ela reservado em minha casa e diz que ele não leva embora porque eu tomo conta dela.

A girafinha foi o meu primeiro brinquedo e, sem dúvida, é o objeto que mais me faz lembrar do meu querido avô, aquele que foi e será meu eterno mestre.

Muitos da sua descendência tem um pouco dele, os filhos, os netos, os bisnetos e tataranetos, o que nos faz uma família muito unida e diferenciada.

Convivi intensamente com ele até final, nos anos 70, e estive ao seu lado nos seus últimos instantes de vida. Quantas saudades!

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