segunda-feira, 30 de abril de 2012

Lembrança de uma amizade verdadeira

Saía de casa bem cedinho, antes mesmo do nascer do sol, ia a caminho da escola, pés descalços, calça curta azul marinho e camisa de brim branca. No embornal de pano, feito carinhosamente pela minha mãe, levava o caderno brochura, estojo com lápis preto e coloridos, bem apontados. Não faltava um lanchinho de pão com mortadela. Na encruzilhada, ao lado da ponte do ribeirão do Salto, encontrava outros colegas que vinham do lado do sítio dos Cubas, os filhos do Seu Zé Mineiro. Passávamos por debaixo do bambuzal, ao lado da casa do tio Bento que, naquela época, antes da demolição de sua casinha de pau-a-pique por uma enchente, ficava bem mais perto do ribeirão. Subia o morro do tio Juvenal e seguia pela estradinha do coronel em direção à Freguesia da Escada.

 Quem chegava primeiro na encruzilhada, aguardava os demais para só então seguir o caminho. Numa das manhãs em que eu cheguei mais cedo, ao ouvir umas conversas vindas da curva do rio, iniciei devagarzinho a caminhada em direção à subida do bambuzal, pois achei que já eram meus amigos chegando. Depois de alguns passos, percebi que não era quem eu esperava, mas, sim, dois rapazes montados em bicicletas.

 Um era mais jovem, tinha entrado há pouco na adolescência, e o outro, mais velho. Logo que percebeu a minha presença, o mais jovem, que vinha na frente, aparentemente mais falante, parou a bicicleta e foi logo puxando conversa:
     - Tudo bem? Está indo pra escola? Fica longe?

 Prontamente percebi que era alguém novo pelas redondezas que queria iniciar uma amizade. Respondi o que havia me perguntado e também quis saber quem eles eram, onde moravam, de onde vieram, pois como conhecia todos nos arredores, sabia, com certeza, que eram forasteiros, até pelo sotaque um pouco carregado, meio paulista, meio mineiro, bem diferente do que estava acostumado.

 Este primeiro contato foi muito rápido, pois logo chegaram meus colegas, mas foi suficiente para saber que se chamavam Valdomiro (o mais novo) e Sebastião, que eram irmãos e que tinham acabado de se mudar para o sítio vizinho, vindos de Cachoeira Paulista. Despedimos-nos e segui meu caminho, sem saber que nasceria ali, com o Valdomiro Arruda, uma das mais lindas amizades de minha vida.

 A família Arruda, uma das mais íntegras que conheci, era formada pelo Sr. Norival e Dona Benedita e pelos sete filhos: José, Benedita, Genésio, Sebastião, Valdomiro, Maria José e Expedito. Com exceção do José, todos foram morar ali no sítio que o Sr. Artur Navarreti, o patrão da família, havia comprado recentemente do José Português. Uma linda propriedade, com uma sede, casa de caseiro e várias casas menores distribuídas em ruas formavam uma espécie de vila. Além disso, havia cocheiras para os cavalos, chiqueiros para os porcos, árvores frutíferas, mangueiras para as vacas, tanques de criação de peixes, oficina, hortas, plantação de eucalipto para uso nos mourões de cerca, galinheiro para as galinhas caipiras, galinhas de angola, tanques para os patos, uma carroça para uso diário e uma charrete de passeio. Enfim, era o mais bem formado sítio que existia em nossas redondezas.

 A partir de nosso primeiro encontro, começamos a nos ver frequentemente. No finalzinho da tarde, reuníamo-nos no armazém do meu pai. Assim, o Valdomiro cada vez mais ia se enturmando com o pessoal e se acostumando com nosso jeito de ser. A principio causou certo desconforto, pois de vez em quando deixava escapar algum palavrão, tipo de expressão que não usávamos e com a qual não estávamos acostumados, mas não era nada que fosse tão agressivo. Logo foi se adaptando e se continha neste sentido.

Percebemos muito rapidamente quão aquela família era trabalhadora, pois cuidava de toda a propriedade sozinha, com ajuda de um ou outro contratado quando havia colheitas imediatas ou alguma obra de emergência. Toda a limpeza do sítio era feita por seus membros. Até mesmo a estradinha de aproximadamente trezentos metros de extensão era varrida semanalmente. Também era de responsabilidade deles o cuidado com a saúde dos animais, sendo que os vacinavam, imunizando-os de possíveis pestes e doenças, sempre que necessário.

 Em uma tarde, quando o sol já estava se pondo, eu vi o Sr. Norival passando apressadamente com a carroça em direção ao centro de Guararema e retornado rapidamente com a companhia da Dona Balbina, a parteira que ajudou em quase todos os nascimentos das redondezas, uma vez que naquele tempo ninguém tinha seus filhos no hospital.

 Como sempre muito curioso, perguntei ao meu pai o que estava acontecendo e ele respondeu prontamente: - Meu filho, a família vizinha deve estar crescendo. Vai nascer alguma criança por lá!

 Ele estava correto! Nascia naquele dia o filho caçula dos Arruda, o oitavo filho: o Messias. Logo mais à noitinha, Valdomiro, que já estava muito enturmado, veio nos dar a noticia desse nascimento.

 Com o passar do tempo, eu e o Valdomiro ficamos cada vez mais amigos e ainda mais unidos. Gostávamos muito de jogar futebol, esporte que seu pai não aprovava, pois não gostava de jogo. Mesmo assim, Valdomiro teimava em ir ao campo meio escondido e foi um atleta de boa qualidade. Para jogar, ele usava calças compridas arregaçadas até o joelho, pois não podia sair de calção da sua casa. Além de jogar bola, fazíamos muitas atividades: estudávamos (até o Ginásio), pescávamos, caçávamos rãs, malhávamos o Judas no sábado de aleluia, fazíamos passeios a cavalo aos domingos, sendo que nessa atividade juntavam-se a nós os meus primos Laudenir e o Jorge. O Laudenir ia com o cavalo Tordilho (do meu avô Antonio), eu gostava de montar a égua Dalila, o Valdomiro ia com o Alazão e o Jorge com o Sanção. Apostávamos corrida e o Sanção, apesar de ser o menor de todos, chegava invariavelmente na frente. Ao retornarmos, passávamos nos estábulos da fazenda para lavar os cavalos e devolvê-los fresquinhos, pois o meu avô Antonio ia conferir para ver se não estavam fadigados.

 Todas as manhãs, no período de férias, a primeira atividade nossa era tomar leite. Saíamos cedinho de casa, seguíamos até a mangueira levando o copo com o açúcar, e, diretamente da teta da vaca, tirávamos o leite bem quentinho. Era uma delícia! A nossa vaca preferida era a Caneca, muito boa de ordenhar, mas também muito arisca. Quando chegávamos à beira do curral, já sabia que em pouco tempo ia ser a vez dela, ficava nos olhando de canto de olho e, assim que o Valdomiro amarrava as suas pernas para que o bezerro iniciasse as primeiras mamadas, prontamente ficava inquieta esperando a nossa entrada. Se déssemos alguma vacilada, ela tentava nos afastar dali. Mesmo assim era a nossa preferida, pois o seu leite parecia ser o mais saboroso!

 Após o almoço, voltávamos à fazenda para algum tipo de diversão, seja para brincar de laço nos barrancos, de pesca nos tanques de tilápia, seja para simplesmente tomar água com groselha, deixada em um litro, enterrada no brejo para refrescar. Ficávamos boa parte do dia juntos, mas mesmo assim, com tantos anos de convivência, nunca tivemos nenhuma desavença ou qualquer desentendimento.

 O maior legado que me deixou, além, é claro, de nossa grande amizade, foi ter me falado com tanta convicção que o Pelé era o rei do futebol e que nunca apareceria outro jogador melhor que ele em todo o mundo. Assim, tornei-me torcedor do Santos FC.

 Fomos crescendo e continuamos a realizar muitas atividades juntos, como fazer trabalhos do Ginásio (sempre procurávamos ficar no mesmo grupo), jogar sinuca no Bar do Monteiro na Freguesia da Escada, nadar na represa do Coronel, passear em Cachoeira Paulista, ir a bailinhos em Lorena e a festas na Santa Cabeça, onde só era possível chegar de caminhão leiteiro. Foi ele também que trouxe de São Paulo a minha primeira calça jeans, da marca Lee, quando já morava na capital e trabalhava na antiga Light. Acompanhava-me ao dentista, pois, como eu era menor, não podia ir a Mogi das Cruzes sozinho.
Ajudou-me nas primeiras redações.

 Valdomiro sempre foi muito correto com os seus amigos. Mais tarde, passou também a ter amizade com meu pai, que era bem mais velho que ele, sendo que costumava passear juntos, o que não é tão normal para pessoas de idades diferentes.

 Os meus pais adotaram a Família Arruda como nossos parentes. Até hoje, seus membros visitam a minha mãe com bastante freqüência, principalmente por ocasião de seu aniversário. Maria José, Genésio e Expedito não deixam de levar para ela um mimo, que normalmente é um vaso com flores ou um buquê de rosas.

 Fui seu padrinho de casamento e logo ele começou a trabalhar na empresa Papel Simão, em São Silvestre (Jacareí). Perdemos o contato, pois nossas vidas tomaram outros rumos, mas com certeza sempre vai estar presente por tudo que representou essa maravilhosa relação de companheirismo, respeito, lealdade e, acima de tudo, de troca de experiências imensuráveis e muita cumplicidade.

 Encontrei em minha vida outros tantos amigos, mas esse sempre terá um lugar especial em meu coração!