segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Clássico é classico e vice versa

Na sexta-feira, iniciávamos todos os preparativos para a partida de futebol do domingo à tarde. A bola de couro escuro ficava em baixo do balcão do armazém de meu pai e era cuidadosamente enchida com uma bomba, que também servia para os pneus das bicicletas e da charrete. Logo após, passava-se bastante sebo de boi em seu entorno para que melhorasse a sua impermeabilidade, uma vez que ela sempre caia ou no riozinho, que ficava de um lado, ou na lagoa, que se encontrava do outro. O sebo também tinha a finalidade de melhorar a durabilidade do couro, já que para comprar uma bola nova era necessário muito esforço e sucessivas vaquinhas.



O sábado era reservado para as preparações mais demoradas, como aparar a grama, arrancar as touceiras e as inevitáveis guanchimbas, muito mais difíceis de se tirar, devido ao fato destas não poderem ser apenas aparadas, pois deixavam talos pontiagudos que poderiam machucar os nossos pés.



Sempre jogávamos as peladas do meio da semana descalços e somente no jogo de domingo é que calçávamos as chuteiras. Era impossível usá-las com muita freqüência, pois poderíamos estragá-las rapidamente e a compra de uma nova era muito difícil. Estas chuteiras se apresentavam bastante diferentes das atuais, pois eram fabricadas com couro muito duro e tinham três carreiras de travas pregadas nas solas. Quando se soltava alguma delas, era necessário repregá-las utilizando um pé de ferro. O final da preparação era a demarcação. Utilizando um carrinho de mão, íamos espalhando caulim e assim se formavam as linhas brancas do campo. Primeiro fazíamos linhas laterais, depois as do meio do campo e do circulo central, em seguida as das grandes e pequenas áreas e, por fim, a marca do pênalti. Para o domingo, restava apenas a colocação das redes em suas respectivas traves.



Recordo-me de um jogo muito especial. Um clássico da região: o EC 77 x Marrons FC. Partidas entre estes dois times sempre vinham cercadas de muita expectativa e ansiedade. Não havia favorito.



O nosso time, o EC 77, vinha de várias vitórias seguidas e tinha no elenco o melhor meia esquerda daquelas redondezas: o meu tio Juvenal. Ele tinha muita facilidade no drible, além de visão de jogo bastante apurada. Chutava bem forte, tanto com o pé esquerdo quanto com o direito. Em todas as partidas, fazia vários gols e dependíamos muito do seu desempenho para ganharmos os jogos. Como ele trabalhava em sistema de revezamento de horários, na fábrica de papel Simão, era impossível estar conosco todos os domingos. Mais um motivo para esta ser uma partida muito importante é que, naquele dia, ele trabalharia até as 14h00 e chegaria a tempo de entrar em campo para o confronto.



Eu e meu pai Fernando tratamos de fechar o armazém a tempo de almoçar e ir para a beira do campo a fim de preparar os últimos detalhes. O jogo de camisas listradas já estava separado e os calções azuis já tinham sido cuidadosamente colocados na mala.



Aos poucos, foram chegando os atletas. O Luizinho goleiro e o Tião Rafael vieram de bicicleta; o Tião Arruda, seu irmão Valdomiro e o Valter Moreira estavam a pé, pois moravam bem pertinho; o Antônio Ferreira, como sempre, de charrete; o tio José Moreira apareceu com sua Brasília vermelha, trazendo os demais integrantes da equipe: o Laerte e o Laudenir. Era só esperar a chegada do craque, colocar os uniformes e começar o jogo, visto que o time adversário já estava batendo bola há algum tempo, no lado do campo que formava uma grande sombra sob a árvore das cigarras.



Por volta das 15h00, o ônibus que trazia os funcionários da fábrica parou ao lado da estrada e dele só desceu o João Alves. Como eventualmente o meu tio ficava um pouco mais para cobrir alguma falta do seu sucessor no turno de trabalho, resolvemos que iríamos iniciar a partida sem a sua presença. O meu tio José Moreira, que também acumulava a posição de beque central e técnico, chamou-me em um canto e, pela primeira vez, recebi a camisa 10 do EC 77! Aquele jogo, como não poderia ser diferente, foi muito pegado e o resultado extremamente apertado. O Marrons FC fez um a zero no primeiro tempo e somente aos quarenta e dois da segunda etapa, conseguimos empatar. Após um cruzamento da esquerda, do meu primo Laudenir, matei a bola com alguma dificuldade no joelho, e, de pé direito, chutei no ângulo...

GOOOOOOL!! Empatamos, assim, a partida!



Terminado o jogo, recebemos a notícia de que o meu tio Juvenal havia se acidentado numa manobra com a empilhadeira que trabalhava. Foi hospitalizado e durante meses ficou o medo de que ele nem ao menos pudesse caminhar. Os médicos não tinham nenhuma expectativa em relação a sua recuperação. Porém, com muita força de vontade, muita fisioterapia e devido ao fato de ser um excelente atleta, não só voltou a andar como também desfilou a sua categoria nos gramados de Guararema pelos trinta anos seguintes, pois até os setenta anos de idade era ainda um craque na arte de jogar futebol!



A partir daí, herdei de meu tio a mais famosa camisa de nosso time. A primeira camisa 10 a gente jamais esquece!

Um comentário:

  1. João, grande contador de histórias e agora também escritor! Muito bom parar o ritmo do dia a dia e viajar no tempo por alguns minutos com seus contos. O problema é viciar e ter que ficar esperando até sair a próxima dose, rs...

    Abraço!

    Paulo.

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