quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A Tabuada do Nove

Estávamos em mil 1964. Pouco ou nada sabíamos que o nosso país passava por uma das fases mais difíceis de sua história. O único comentário que soubemos a respeito do golpe militar foi quando o Lico Freire, nosso vizinho e dono de um alambique próximo de nossa casa, não deixou a sua filha Ester ir à aula naquele 31 de março. Uns parentes dele, que moravam na capital, vieram visitá-lo e comentaram que viram tanques de guerra locomovendo-se em São Paulo e carros de efetivos do exército nas ruas.

Nossa vida era muito tranqüila e como os meios de comunicação resumiam-se a um radinho de pilha, não sabíamos nada sobre os porões da ditadura, torturas e AI-5, anos de chumbo, regime militar, falta de democracia, censura, perseguição e repressão política.

Nessa época eu estava no segundo ano, na Escola Rural da Freguesia da Escada. Levantava cedo, fazia as lições de casa, almoçava e aguardava os filhos do Zé Mineiro(Cida, Cristina e Rubens) para irmos juntos à aula. Todos iamos de bicicleta ou, eventualmente, quando o tempo estava ruim, eu pegava carona na charrete da Ester.

A escolinha ficava no alto de um barranco, próximo ao pátio da capela de São Benedito. Para chegar à entrada do prédio, que anos mais tarde eu percebi que era apenas uma casinha, subíamos uns degraus cavoucados na terra batida. Quando chovia, era um festival de escorregões. Havia somente uma sala de aula, dividida em três fileiras, uma para cada ano: a primeira fileira para o primeiro ano, a segunda para o segundo e a terceira para o terceiro.

O quadro negro, que na realidade era uma grande lousa pintada de verde oliva, também era dividido em três partes iguais. As mesinhas, chamadas carteiras, eram de madeira escura,pés de ferro e comportavam dois alunos. Na parte da frente havia o acento articulado de abrir e fechar. Em seu tampo tinha uma fenda para colocar os lápis e canetas tinteiros (ainda não existiam as esferográficas), e uma espécie de tinteiro com tampinha, mas já desativado, uma vez que servia para as canetas à pena, um pouco mais antigas. Embaixo tinha um espaço apropriado para colocar os cadernos que dividíamos com o companheiro do lado.

A primeira carteira de cada fileira não tinha o banquinho para acento, tinha só a mesinha. Os meninos sentavam com os meninos e as meninas com as meninas. Não havia forro no telhado e as telhas de barro davam passagem a gotículas de água quando das chuvas de verão.

No fundo da sala tinha um armário de madeira e vidro que servia para guardar a caixa de giz, o apagador e os livros que não podíamos levar para casa. O nosso material escolar era composto de um caderno brochura (capa e conteúdo grampeado no centro), cartilha “Caminho Suave”, de Branca Alves de Lima, para o pessoal do primeiro ano e outros livros didáticos para as demais séries,além de estojo e lápis de cor, na caixinha de papelão.Outros itens incluiam mata borrão e alongador de lápis(pois usávamos até virar um toquinho), frasco de cola goma arábica e frasco de tinta preta.

Havia uma mesinha com um filtro de barro cozido daqueles que, através de uma vela de cerâmica, filtra por gravidade e que mantém a água bem fresquinha.


Na mesa da professora ficava um vaso que revezávamos na renovação das flores para mantê-las sempre muito bonitas. Levávamos merenda de casa e na hora do recreio fazíamos uma roda na pracinha da chácara do senhor Buk, para lancharmos.

O banheiro ficava do lado de fora e servia tanto para os meninos como para as meninas. Sempre havia a necessidade de ir em dupla, pois, como não tinha trinco na porta , um ficava do lado de fora tomando conta, para não haver surpresas desagradáveis.

Não tinha servente ou alguém que cuidasse da limpeza; logo, fazíamos mutirão para isso.
Todos os dias, iamos até o ponto de ônibus esperar a professora chegar e, assim que ela descia, um aluno carregava a sua bolsa e outros cadernos e livros.

Ela era muito enérgica, bem ao estilo da educação nessa época. Jogava apagador nos alunos, batia com a régua na cabeça dos mais desatentos, puxava suas orelhas.Xingava e colocava apelidos como “Dito Argola” ao Antônio, já que no seu caderno havia muitas rodinhas em vez de palavras. Este apelido ficou com ele para toda a vida. Só faltava a palmatória que havia sido abolida das salas de aulas há algum tempo. Repressão total!

Em uma sexta-feira, a professora avisou que na próxima segunda-feira iria cobrar em chamada oral a tabuada, desde a do cinco até a do nove. Tabuada não era o meu forte, por isso passei o final de semana decorando, conforme a recomendação. Pedi ao meu pai para ajudar-me. Eu ia repetindo, e ele acompanhando. Tudo parecia na ponta da língua.

Chegou a hora da chamada, bem no finalzinho da aula. A professora chamou-me logo de imediato, visto que eu me sentava na primeira fileira (os menores sentavam-se na fileira da frente). Começou o “interrogatório”:
Ela falou com dura voz:
− Seis vezes seis!
Eu respondi:
− Trinta e seis.

E assim foi, ela “interrogando” sempre de maneira salteada e eu tenso, mas acertando todas: a do sete, a do oito, até que chegou a do nove.
Ela falou:
− Nove vezes sete!
Eu respondi acertadamente:
− Sessenta e três. Ela questionou, quase gritando:
− O quê?
− Oitenta e um.
− Quanto?

E eu mais nervoso ainda:
− Noventa e quatro.
E aí com o rosto vermelho, quase pegando fogo,perdi completamente a noção do que estava respondendo.
Ela foi logo intimando:
− Pode ficar naquele canto de castigo, por uma hora, estudando a tabuada do nove.
Fiquei ali pensando como eu iria chegar lá em casa depois desse vexame.
Meus amigos foram todos embora e eu retornei sozinho com a minha bicicleta, chorando bem baixinho por todo o caminho, com receio de que alguém me visse nessa situação.
Quando cheguei a minha casa, meu pai foi me receber na porteira e, com um longo abraço, me disse:
− Filho, não fique triste, pois o papai também não é tão bom em aritmética. Pegue a sua vara de pescar e vamos para a beira do rio, pois a mamãe está precisando de mistura para o jantar. Amanhã eu te ajudo nas lições de casa!

4 comentários:

  1. Caminho suave, voltei ao passado com este texto!
    beijo querido, e continue nos alegrando com historias ricas como esta.

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  2. E você disse que não era a sua praia! Estou adorando essa riqueza de detalhes me transportou para esses lugares, continue ,esta muito bom...grande abraço!!

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  3. Nossa primo Parabéns pela riqueza nos detalhes de suas histórias.......nossa da para viajar....apesar de eu não ter usado nenhum dos materias citado.....kkkkkk cê tah véio hein!!!! kkkk ....

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  4. Que coisa + linda de se ler!Me fez lembrar da minha infancia(tambem tinha dificuldade com a aritmética)kkkkkkkkkkk....

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