terça-feira, 5 de outubro de 2010

A nossa Tia Fininha

Logo que a minha avó Lina sofreu um derrame e ficou com a mobilidade afetada, mudamos para a casa grande, sede do sítio, de onde a minha mãe tinha saído havia alguns anos, pois, após o casamento, meus pais foram morar na casa anexa à vendinha, à beira da estrada, que liga Mogi das Cruzes a Jacareí. O meu avô Antônio já estava com uma idade bem avançada, também doente, e como a minha mãe tinha muito jeito para esse tipo de cuidado, assumiu essa missão.

A casa da venda ficou por algum tempo fechada, até recebermos a proposta de ceder a moradia para um casal: tio Antônio Rafael, irmão de minha avó, e a esposa dele, Tia Josefina.

Eles moravam num sítio muito longe dalí e não tínhamos, até então, muito contato com o casal, mas logo foram se enturmando e transformaram-se em pessoas muito importantes para todos. Nós os chamávamos carinhosamente de Tiozinho e Tia Fininha.

Não tiveram filhos. O Tiozinho, muito bonzinho, falante e risonho. A Tia Fininha era alguém diferente de todas as senhorinhas que eu conheci. Tinha um pouco mais de um metro e meio, cheinha (na realidade não era fininha), cabelos bem branquinhos e muito atenta em relação à tudo o que acontecia ao seu redor. Chegava a ser excêntrica e até meio exótica. Era extrovertida e muito avançada para os padrões da época. Tinha um palavreado bem caipira e não fazia nenhuma questão de modificá-lo, nem mesmo quando não entendíamos algum termo. Ela é quem dava as ordens em casa e tomava conta de tudo, até das finanças. O dinheiro economizado era guardado em um balainho em baixo da cama.

Os dois trabalhavam na roça como meeiros, em uma chácara na Freguesia da Escada, no outro lado do rio Paraíba, e iam todos os dias caminhando, mais ou menos 6 quilômetros, pela beira da estrada. A Tia Fininha ia lá na frente e o Tiozinho uns cem metros atrás. De vez em quando, trocavam algumas palavras, quase gritando, devido à distância que os separava.

Ela falava:
− “Anda logo, seu véio lerdo, parece uma tartaruga andano”.
Ele resmungava:
− “Tô ino, muié, to ino...”

Quando chegavam em casa, ainda faziam várias atividades, como: torrar e moer café, cuidar da horta, fazer paçoca de carne seca, preparar pamonha, malhar feijão, debulhar milho, socar arroz no pilão, tratar das galinhas, além de cozinhar e deixar pronta a comida para o próximo dia, que ia dentro de dois caldeirõezinhos enrolados em um paninho de prato, pois almoçavam no serviço. O Tiozinho cuidava da cozinha, das roupas. As demais tarefas domésticas e outros afazeres ficavam por conta dela.

Exímia tecelã, fazia trabalhos de taquara que mais pareciam verdadeiras obras de arte. Buscava a taquara póca, em uma touceira que havia no espigão da capoeira, bem acima da nossa casa. A taquara tinha que ser bem madura e retirada na lua minguante, para não carunchar. Cortava os bastões entre os nós e preparava várias varetas, milimetricamente aparadas. Tirava o seu miolo com uma faquinha bem afiada em uma pedra de amolar, colocada estrategicamente ao lado de um banquinho de madeira. Sentada nele, com as mãos bem calejadas, que até pareciam duas casquinhas de tatus, ia entrecruzando as taquarinhas, formando um maravilhoso mosaico. Saiam dali lindas peneiras, balaios, cestas, samburás, covos, cestos, jacás. Tudo era preciso, exato e muito simétrico. Impossível perceber qualquer defeito nas junções.

Seus cachorrinhos, Chulim, Minguito e Cravito, ficavam pelos arredores da casa, sempre latindo ao menor ruído ou à chegada de alguma visita. Era a tia Fininha quem tirava com um alicate os espinhos que ficavam fincados em seus focinhos quando atacavam ouriços.

Criava no quintal uma Seriema, que fôra encontrada com machucados em um roçado. Cuidava dela e, de vez em quando, trazia umas cobrinhas para ela se alimentar.

Quando tinha alguma dor de dente, ela mesma resolvia. Pegava um cordãozinho, amarrava em uma ponta no dente, enroscava a outra ponta em uma folha da janela do quarto, dava um tranco só, e lá ficava ele pendurado, com raiz e tudo. Fazia questão de mostrar a sua proeza para quem fosse visitá-la.

Foi atuante no nascimento de um dos filhos da Geralda, esposa do Antonio Ferreira. Ela, em trabalho de parto, se dirigia à Santa Casa de Guararema de charrete, mas parou em frente à casa da Tia, e a criança nasceu ali mesmo, saudável, por suas mãos, embaixo do pé de abacateiro.

Em um final de ano, véspera de ano novo, no final da década de setenta, o casal estava voltando de suas tarefas diárias pelo acostamento da estrada quando um caminhão passou raspando pela Tia Fininha. Abalroou o Tiozinho e ele veio a falecer.

A partir daí, quando todos pensavam que a Tia Fininha iria fraquejar ou voltar para perto de seus familiares, lá no bairro do Itapeti, ela decidiu continuar morando ali mesmo e tomar conta de tudo sozinha.

Em uma noite, acordamos ouvindo alguns dos seus gritos, vindos dos lados do armazém, seguidos de um tiro de espingarda. Quando lá chegamos, encontramos a Tia Fininha com a espingarda de dois canos na mão, o rosto meio chamuscado de pólvora, o cabelo todo arrepiadinho e mostrando um rombo na parte de baixo da porta de saída da venda. Foi logo falando:

− “Que pena, se o segundo tiro, por causa da espoleta moiada, não tivesse faiado, eu ia acertá direitinho a bunda dele”.

Certamente não passava de um ladrãozinho “pé de chinelo” que tentara forçar a porta, na tentativa de roubar algumas guloseimas e não teve moleza...

Tia Fininha, que falta você nos faz!!!

6 comentários:

  1. Ai que saudade mesmo da tia fininha, felizes fomos nós de podermos conhecê-la...só de lembrar vem o cheirinho dela de fumaça do fogão de lenha!!!
    Quantas histórias presenciamos com ela.
    Ir na casa dela era como voltar pelo menos 40 anos no tempo.
    Morria de medo do quarto dela, sempre achei que fosse mal assombrado pelo tiozinho...rsrs

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Tia Fininha, o figurinha premiada, que só nos tinhamos.

    O Tiozinho então nem se fala.

    -Lembrei-me das cenas dele correndo atraz de um cavalo, para capalo kkkk
    -Comendo farofa, ele pegafa com a mão no pote e jogava na boca, e "derrepente", jogou uma barata,"O Dó"
    kkkk

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