quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A caçadora de veado

A minha avó materna era uma mulher muito batalhadora e corajosa. Franzina fisicamente, mas uma fortaleza nas atitudes. Era pequenininha, sempre usava vestidos de chita bem compridos, seus cabelos eram branquinhos, cuidadosamente trançados e presos por grampos em um birote no alto da cabeça, com dois pentinhos tortinhos de cada lado. Dizia que nunca os havia cortado, porém eram bem fininhos e nem tão longos.

Pelo menos três vezes por semana, à tardezinha, perto do pôr do sol, ia até à beira do ribeirão para pescar a mistura da janta. Fisgava a quantidade suficiente de peixes (um para cada um de nós) e só então retornava para casa para fazer o jantar.

Chegou a se acidentar com o anzol quando, após um movimento mais brusco, o mesmo transpassou a sua pálpebra. Foi necessário que o meu avô cortasse um pedacinho da pele com o seu canivete para retirá-lo. O mais incrível é que ela nunca reclamava de nada, era como se não sentisse a sensação de dor.

Ela gostava tanto do ribeirão que, quando estava grávida de 9 meses do meu tio Bento, resolveu ir mariscar camarão com peneira. Para isso, era necessário entrar na água, que ficava mais ou menos na sua cintura. Começou a sentir as dores, voltou rapidamente para casa e nem deu tempo de preparar o delicioso bolinho de camarão. O meu tio veio ao mundo logo depois, já que naquele tempo as crianças nasciam em casa mesmo. Foi só o tempo da parteira chegar.

Uma de suas muitas tarefas era produzir farinha de mandioca.
A tecnologia para fabricação da farinha era simples, mas exigia alguns cuidados no seu desenvolvimento. As raízes da mandioca eram colhidas pelo meu avô e trazidas em jacás. Eram bem lavadas em água corrente para eliminar as impurezas, pois a higiene e os cuidados durante todo o processo de fabricação eram fatores fundamentais para garantir um produto de qualidade. O passo seguinte era fazer o descascamento das raízes utilizando faquinhas de aço inoxidável seguida de uma segunda lavagem para a retirada da casca ou impurezas ainda remanescentes.

Em seguida, era feita a ralação em uma roda de madeira que possuía duas manivelas e era coberta em sua superfície por uma chapa toda furadinha feito serrilhas, chamada de cevadeira. Tinha que ser operada por duas
pessoas na manivela enquanto uma ia alimentando com as raízes. Era nisso que a gente podia ajudar.

Assim que eram raladas, caíam em uma gamela de madeira e daí o conteúdo formado era colocado em um tipiti ou cesto feito de bambu, e prensado no fuso com auxílio de uma tripeça de madeira muito pesada.

A água resultante da prensagem da massa ralada, chamada "manipueira", era muito tóxica e poluente, por isso não se podia jogar no riacho, pois se tinha o risco de matar os peixes.

Deixava a massa prensada até o outro dia, quando levava para a torração
em um tacho de cobre, por um período aproximado de 20 minutos, mexendo bastante e uniformemente a massa com o auxílio de um rodo de madeira, de cabo longo e liso, até a secagem final da farinha.

Lembro-me de um fato muito interessante relacionado à minha avó. Naqueles tempos, os amigos de meu avô reuniam-se para caçada ao veado.
Chegavam todos bem cedo, e minha avó preparava o desjejum, normalmente um café reforçado com farinha de milho e biscoito. Traziam os seus cachorros perdigueiros, juntando-os aos da nossa casa, e saíam com a matilha, que geralmente era formada por animais de olfato muito apurado e de grande velocidade. Antigamente,todos caçavam armados, ou seja, a intenção era matar a caça, pois ainda não havia a consciência da preservação dos animais silvestres.

Em uma dessas caçadas, chegaram todos muito animados, prometendo que seria aquele um dia muito promissor para a caçada. Colocaram os cachorros no mato, e estes saíram em disparada, pulando valas, córregos, pontes caídas, mata-burros, cercas de arames.

Enquanto isso, a minha avó ficou preparando o almoço. Assim, no momento em que todos chegassem famintos, tudo já estaria bem arrumado e colocado à mesa.

De repente, ela ouviu um barulho no quintal. Saiu para ver o que estava acontecendo e notou a presença de um veadinho todo assustado, sem saber para onde correr.

Rapidamente, abriu uma das portas da casa. O animal entrou na sala e rumou para o quarto do meu tio Augusto. Neste momento, ela fechou a porta do quarto e continuou os preparativos até a chegada dos caçadores.

Depois de algum tempo, chegaram todos muito cansados e cabisbaixos, pois a caçada naquele dia não tinha sido nada promissora. A minha avó foi prontamente falando com eles em tom de gozação:

-Seus caçadores de meia tigela, cadê a caça que todos saíram prometendo trazer?

Meu avô foi logo justificando:

-Não sei o que aconteceu, o veado foi muito rápido e logrou a nossa cachorrada. Não foi dessa vez...

A minha avó, ainda em tom de gozação, falou:

-Eu aqui em casa, cozinhando para vocês, sou mais caçadora que todos juntos.

O meu avô, sem entender nada, disse:

- Pára com isso e vamos servir logo essa comida, pois estamos todos famintos.

A minha avó, rindo, disse:

-Antes dê uma oiada no buraco da fechadura do quarto do “Gusto” que oceis vão entender.

Foi quando, um por um, boquiabertos, olharam, e rindo comentaram:

-É gente, dessa vez “a porca torceu o rabo”, a Dona Lina foi a grande caçadora da tarde!

Esse veadinho ficou no sítio por um bom tempo, em um cercadinho próximo ao chiqueiro dos porcos, até um dia em que aproveitou uma brecha na cerca e sumiu na mata para nunca mais voltar.

5 comentários:

  1. Essa nossa avó Lina era "porreta"
    Ainda consigo vizualiza-la, torrando farinha em um tacho enorme.

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  2. Essa é umas das histórias mais legais. Se bem que adoro todas elas... beijos

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  3. Que sorte que teve o veadinho!!!Adorooo, rsrsrs!!!

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  4. Hehe, mais uma história pra coleção!

    Sempre acompanhando,

    Eric

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  5. Lendo a sua história, lembrei da minha Vó Floresminda torrando café que colhia do quintal e socando-o no pilão e também matando galinhas, tirando o sangue para fazer molho (sempre gostei!!) e as "ovas"... Faz muito tempo!!!

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