quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Meus tempos de Ginásio

Naquele dia, minha mãe acordou ainda mais cedo que o de costume, pois eu iria vestir pela primeira vez o uniforme do Ginásio Estadual Roberto Feijó e ela tinha que dar a última passadinha com o ferro de brasas, que demorava um pouco para acender. O uniforme era diferente de tudo o que eu já havia vestido até então: calça cáqui, camisa branca, gravata azul-marinho, meias brancas e sapatos pretos. No bolso da camisa estava bordada a logomarca da escola, GRF, em azul, e em baixo do G, que era bem maior, bordava-se um traço para a primeira série, dois para a segunda e assim por diante. Eu tinha 11 anos e acabava de sair do Grupo Escolar Getúlio Vargas.

Naquela época, o ensino era bem diferente. Começávamos na escola mista rural, onde todos estudavam em uma mesma sala de aula, do primeiro até o terceiro ano, com uma só professora. Depois, seguíamos para o Grupo Escolar para concluir o quarto ano, momento em que recebíamos um diploma de formatura do primário. Aprendíamos a tabuada de cor e salteado, todas as quatro operações matemáticas básicas (soma, subtração, divisão e multiplicação) e resolvíamos problemas básicos de aritmética. Tínhamos algumas noções de história do Brasil. Depois disso, íamos para o Ginásio, onde completávamos os estudos da primeira série até a quarta. Após diplomados do Ginásio, dever-se-ia escolher entre o Clássico ou o Científico: mais três anos antes do curso superior.

Para entrar no Ginásio, tínhamos que nos preparar por um ano e enfrentar o exame de admissão. Sentíamo-nos como vestibulandos: experimentei a mesma tensão mais tarde ao fazer o vestibular, talvez até um pouco menos, pois, com o exame do Ginásio, era a primeira vez que íamos enfrentar um mundo “mais adulto”.

Na escola estadual, o ensino diferenciava-se por ser bem mais puxado que o das particulares, estas freqüentadas por aqueles alunos que não conseguiam acompanhar o ritmo da pública. O ensino público tinha muita qualidade. Todos queriam estudar nessas escolas, as melhores. Se alguém não tirasse a média de 7, repetia de ano e se fosse reprovado por três anos, era jubilado, expulso. Somente as escolas particulares aceitavam alguém nessa condição.

Em meu primeiro dia de aula no Ginásio, estava muito feliz, porém muito assustado, pois vinha da roça, onde não havia nem luz elétrica, sendo a nossa única comunicação com as notícias do mundo o famoso radinho de pilha “Philips”. Eu me esforçava muito, pois não havia outra maneira de eu me sobressair, já que, além de muito caipira, eu era o menorzinho de toda a turma, aquele que tinha que sentar na primeira carteira, sendo assim o primeiro nas famosas chamadas orais. Isso sem contar a timidez natural de um garoto dessa idade, enfrentando o que era para mim o desafio da “cidade grande”.

A classe era composta de 53 alunos, somente meninos, pois ainda não existiam as classes mistas. As meninas ficavam em uma sala ao lado da nossa.

Outra diferença muito marcante era a quantidade de professores diferentes, uma vez que eu tinha tido apenas quatro professoras na vida. A partir de então, teria um para cada disciplina, tantos que eu até confundia no início, tendo demorado um pouco para familiarizar-me com a planilha dos horários de aulas. Além disso, havia todo o tratamento formal. Aluno não falava alto com professores e nem retrucava qualquer ordem. Ninguém chamava professor de tia ou tio. Referíamo-nos a eles como senhor e senhora. Respeito total. Ninguém se retirava da sala de aula sem pedir e só saía se a autorização fosse concedida. Quando o professor entrava na sala, silenciava-se todo e qualquer barulho, reinando o silêncio e o respeito, símbolos de autoridade. Era como se eles fossem os nossos segundos pais em relação ao poder que tinham sobre nós.

Todos os dias, antes de entrarmos para a sala de aula, perfilávamos em frente à bandeira brasileira, cada série em sua fila. Só entrávamos para a sala de aula, continuando em fila, depois de cantarmos o Hino Nacional.

Havia o Canto Orfeônico, onde se aprendia a ler as notas musicais, a compreender as figuras no pentagrama em função de sua duração (colcheias, semi colcheias, fusas, etc.), a escrever as claves de Sol, a distinguir sustenido de bemol. Além disso, era nesta aula que treinávamos o hino, durante todo o ano, estudando minuciosamente cada estrofe e o sentido de cada palavra.

Aos poucos, fui entendendo aquela nova dinâmica. Tive o privilégio de ter vários mestres, de quem até hoje me recordo com muito carinho, cujos ensinamentos, tanto de conhecimento quanto de cidadania, ajudaram e muito na minha formação e de tantos outros amigos. Era um time de profissionais da melhor qualidade, apresentado o Sr. Alfredo Daher, nosso diretor, muito exigente e disciplinador; o Sr. Lineu, de Química; o Sr. Cláudio, de Matemática; o Sr. Olímpio, de Geografia; o Sr. Valdomiro, de História; a D. Marli, de Canto Orfeônico; o Sr. Quinho, de Artes Manuais; a D. Rosa, de Português e o Sr. Paulo de Tarso, de Educação Física, além do Sr. Josias e D. América, queridos secretários, e D. Iracema, a servente.

De todas as matérias, havia uma que me encantava: o Francês. Eu achei demais aquela forma de pronunciar as palavras fazendo bico e arranhando a garganta. O nosso professor, um educador fantástico chamado Paulo Afonso Daher, filho do diretor, tinha uma didática muito peculiar. Ele chegava à porta da classe e enquanto não estivesse tudo no mais absoluto silêncio, não adentrava. Moço muito alto, forte, com um bigode preto enorme. Raramente sorria e sua fisionomia fechada nos fazia ainda mais atentos à matéria.

Quando todos se levantavam para recebê-lo, ele falava bem alto:

- Bonjour.

Todos respondiam em um tom uníssono:

- Bonjour professeur.

Entrava na sala e iniciava a chamada. Chamava cada aluno pelo número e este deveria ficar em pé, respondendo em francês com uma frase. A cada semana essas sentenças eram trocadas, passavam para outro aluno, até que todos soubessem de cor todas as frases da classe.

Ele falava:

- Numéro un!

O aluno correspondente ao número um, respondia:

- Les deux hits qui colle jusqu'à. (Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura)

Ele falava:

- Numéro deux!

O número dois respondia:

-Mieux vaut un oiseau dans la main vaut mieux que deux tu l’auras. (Mais vale um pássaro na mão do que dois voando).

Ele falava:

- Numéro trois!

O número três respondia:

-La voix du peuple est la voix de Dieu. (A voz do povo é a voz de Deus)

Ao final do terceiro ano tivemos que recitar a fábula “Le Corbeau et le Renard” (O Corvo e a Raposa), de Jean de La Fontaine. Não errei nenhuma frase. Tirei nota máxima. Decorei com tanta dedicação que ainda recito de cor. De tanto eu repetir essa história em casa para as minhas filhas, a Rafaela aprendeu também e sempre repete comigo, com seu sotaque “francês mogiano”:


Maître Corbeau, sur un arbre perché,
(O senhor corvo numa árvore empoleirado)
Tenait en son bec un fromage.
(Segurava no seu bico um queijo)
Maître Renard, par l'odeur alléché,
(A senhora raposa, pelo odor atraída)
Lui tint à peu près ce langage:
(Dirigiu-se-lhe mais ou menos com estas palavras:)
"Hé ! bonjour, Monsieur du Corbeau.
(Olá! Bom-dia, senhor corvo)
Que vous êtes joli ! que vous me semblez beau !
(Como sois bonito!Como me pareces belo!)
Sans mentir, si votre ramage
(Sem mentir, se o vosso gorjeio)
Se rapporte à votre plumage,
(For semelhante à vossa plumagem,)
Vous êtes le Phénix des hôtes de ces bois.
(" Vós sois a fénix dos habitantes destes bosques.)
A ces mots le Corbeau ne se sent pas de joie
(Com estas palavras o corvo não cabe em si de contente;)
Et pour montrer sa belle voix,
(E para mostrar a sua bela voz,)
Il ouvre un large bec, laisse tomber sa proie.
(Ele abre o grande bico e deixa cair a sua presa.)
Le Renard s'en saisit, et dit : "Mon bon Monsieur,
(A raposa apodera-se dela e diz: "Meu bom senhor,)
Apprenez que tout flatteur
(Aprendei que todo o bajulador)
Vit aux dépens de celui qui l'écoute:
(Vive às custas daquele que o escuta:)
Cette leçon vaut bien un fromage, sans doute.
(" Esta lição vale bem um queijo, sem dúvida.")
Le Corbeau, honteux et confus,
(O corvo, envergonhado e confuso,)
Jura, mais un peu tard, qu'on ne l'y prendrait plus.
(Jurou, mas um pouco tarde, que não o apanhariam mais)

Bons tempos, aqueles! Talvez muito mais difíceis que os dias de hoje, em vários aspectos, porém muito mais charmosos. Havia menos violência, mais solidariedade e, principalmente, muito mais respeito aos educadores. Saudades!

14 comentários:

  1. Como seria maravilhoso se tivesse sobrado pelo menos 1/10 do respeito por nossos mestres!!!
    Quero ouvir você recitar a fábula com o sotaque mogiano...ah o Lorenzo adorou o "bonjour", a única palavra que consegui pronunciar...rsrs
    beijos

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  2. È PRIMÃO, bons tempos mesmo, Aula de Frances eu gostava muito, mas logo tiraram como materia obrigatoria.
    Da saudades dos tempos.
    Boa memoria do quadro de professores e servidores.
    E o antigo "Ginásio Roberto Feijo", era no atual predio da prefeitura, hoje toda reformada e modificada.
    Valeu, ficamos no aguarde de mais uma.
    gde ABRAÇO

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  3. Nossa, q legal!

    Sempre gosto de ouvir do meu pai come a escola era antigamente...de vc tmb n soa menos interessante, João! Certamente, be mais detalhado! hehe...

    Abraço!

    Eric

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  4. Bons tempos aqueles que os professores eram idealinsta, que as escolas públicas eram as melhores e realmente aprendiamos, tbem tive dois anos de frances. Muito bom joão!!!

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  5. ´Nossa que legal João!!!!
    Eu já sou do tempo mais antigo!
    Só fiz o primário em Guararema, no
    Grupo Escolar
    Presidente Getúlio Vargas.
    Depois meus pais mudaram-se para Mogi e terminei o restante aqui em Mogi mesmo.
    Mas no meu tempo de Grupo Escolar, estudei com o
    Laerte Álaíde e Lidia.
    Tempo em que era obrigatório a cantar e saber de cor o Hino Nacional antes de entrar em sala de aula.
    A saber a tabuada na ponta da lingua.
    Tempo em que se respeitavam os professores como se fossem nossos pais. Tb. levava reguada na cabeça e se esquecia a fita branca no cabelo! colocavam um laço de papel, se não voltava pra casa! Dnª Jordelina, lembro me bem dela, era mt. brava, mas ensinava bem!
    Valeu primo!!! adorei participar! e contar um pouco das mtas. coisas que vivenciei.
    bjus.
    CIDINHA

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  6. o professor Olimpio Zapille está vivo com 81 anos e mora em Mogi é uma pessoa muito ativa, ele e sua esposa professora Terezinha Giacco. foi um dos primeiros professores do feijó.
    legal João a história de Guararema agradece!

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  7. João, até hoje ainda falo as duas primeiras frases da fábula, com meu sotaque Guararemês. Difícil esquecer...
    E pensar que eu dei aula particular de francês para o Mancha (Roberto Mancinelli) e ganhei em troca uma caixa de bombons de cereja da Kopenhagen, naquela época...rs
    Bons tempos...
    Paulo Afonso, Lineu, Claudio, Rosa Benitez, Olimpio e todos os outros, era muito bom.
    Saudades.
    Feliz Ano Novo a todos que voce encontrar, a voce e a sua família.
    Fiquem com Deus.
    Elisa

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  8. Muito bom. Pois é como digo:os professores começaram a perder o respeito quando as crianças começaram a chamá-los de "tio". Depois ficaram impossibilitados de aplicar qualquer corretivo, depois tiveram que, além de instruir, "educar" (e como tem criança mal educada nessa terra de meu Deus!). Por último, os professores tiveram que engolir a frustração de ter que aprovar, seja por determinação legal, seja para não descontentar quem paga (os pais), aquele aluno que ao final do curso não se preocupa em desenhar o "O" com o fundo da garrafa, como diz uma amiga minha - a Conceição. E olha que nós duas, em determinada época da vida, fomos professoras também!

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  9. Muito bom, João!!! Excelente blog. Suas narrativas de um tempo áureo nos faz viajar no passado e recordar o quanto éramos felizes e até sabiamos disso. Eu nasci em Mogi das Cruzes, em 1963/4 vim morar em Guararema ficamos por aqui cerca de um ano ou mais e voltamos pra Mogi, nesse um ano fiz o parquinho aqui, minha professora era a saudosa Dna. Bilica, também fui coroinha do Pe. João. Estudei todo o primário no Sesi-113 em Mogi, do 1º ao 5ºano, quando então voltamos pra cá em 1971 e não sai mais, aqui no Roberto Feijó iniciei a primeira série ginasial e estudei nesse ano e no seguinte aulas de francês, mas pouca coisa me recordo disso. Parabéns pelo blog, um forte abraço!!!

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  10. João, como a gente guarda coisas maravilhosas na mente. Aulas perfeitas, educação exemplar, respeito pelos professores, carinho pelos amigos, enfim, tudo era perfeito. Até hoje lembro dos textos em francês que você colocou. Hoje encontrei com o professor Lineu e falei a ele que muitas pessoas me perguntam quem colocou o meu apelido de Peixinho. Falei a ele: Perguntem pro Lineu. E rimos os dois. Todos nós daquela época tínhamos apelidos que guardamos com carinho. João, ou melhor, Joãozinho, parabéns pelo blog, isso vai fazer muita gente da nossa época ficar muito feliz. Um grande beijo.

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  11. Ei João! Se lembra de quando você caiu duro no pátio do Instituto Washington Luíz em Mogi das Cruzes? Lá pelos idos de 1971. Parece que nós tínhamos ido fazer uma admissão para entrar lá. Lembra? Parece que você tinha comido um ovo frito e passou mal pacas. Ficou nervoso.Um grande abraço. Jordano.

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