quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A primeira tv a gente não esquece

Todas as noites, minha mãe preparava o jantar enquanto esquentava bem a água em um caldeirão no fogão à lenha. Colocava o líquido já quente na bacia e ia temperando com a água fria retirada do poço até a mistura ficar na temperatura ideal para um banho bem gostoso. Tirava a minha roupa, que normalmente estava bem sujinha, pois eu brincava pelo terreiro o dia todo. Nessa idade, o que eu mais gostava de brincar era de colocar a girafinha, como se fosse um cavalinho, num curral feito de sabugo de milho, ficando eu sentado no chão, debaixo de uma mexeriqueira que ficava próxima do quartinho das ferramentas.

Depois de trocado, com as roupas limpinhas, eu subia a escada que ia dar no armazém para aguardar o meu pai terminar de contar a féria, que era o termo utilizado para o dinheiro arrecadado durante o dia de trabalho. Ele retirava as notas de dentro da gaveta, situada embaixo do balcão, onde já estavam devidamente separadas por valor. As cédulas eram de 20 cruzeiros (Duque de Caxias), 50 cruzeiros (Princesa Izabel), 100 cruzeiros (D. Pedro II), 200 cruzeiros (D. Pedro I), 500 cruzeiros (D. João VI) e 1.000 cruzeiros (Pedro Álvares Cabral). Eu ia ajudando a colocar na ordem e, como não entendia muito bem o valor, considerava as cores. Depois de juntar todas as notas, o meu pai as contava e anotava o valor em uma caderneta, sendo que cada linha representava um dia da semana. No final da página, era somado o total arrecadado de cada mês.

Para o término do expediente, existia todo um ritual. Primeiramente, fechavam-se as portas da frente, colocando umas trancas de madeira encaixadas em um suporte de ferro, depois as tramelas, situadas nos batentes superiores. Os suportes eram amarrados numa cordinha para que não se desprendessem das trancas. Depois de fechadas, alguns engradados de bebidas eram ali encostados, servindo de reforço em caso de alguém forçar as portas do lado de fora. A mesma coisa se fazia com a janelinha da frente, com as dos fundos e com a porta lateral. Apagávamos o lampião e, com uma lamparina acesa, descíamos os degraus, os quais davam para a sala de casa. Já podíamos sentir o cheirinho delicioso da comida à mesa.

Em uma noite dessas, enquanto jantávamos, ouvindo as músicas de “Alvarenga e Ranchinho” e “Tonico e Tinoco”, no rádio, o meu pai ia explicando que já existiam aparelhos de televisão, onde, além do som, podíamos também ver imagens. Porém, como na região ainda não havia energia elétrica, não era possível ter um equipamento desses por ali. Pegando uma caixa de fósforos, ele foi demonstrando, na mesa, como era esta novidade, montando um lay out com palitos.

Eu fiquei muito interessado e ele prometeu que no dia seguinte iríamos conhecer pessoalmente aquela maravilha. Como em todos os dias, adormeci em seu colo, mas desta vez foi um pouco mais difícil que normalmente, pois eu estava muito curioso e ansioso para que chegasse logo o outro dia. Acordei cedinho e fui logo cobrando a nossa viagem para conhecer um aparelho de televisão.

Como o meu pai sempre cumpria o prometido, pediu à minha mãe que colocasse em mim a minha melhor roupa. Pegamos o ônibus da Santa Maria Viação e rumamos para Mogi das Cruzes. Eu sempre dava uma cochiladinha durante a viagem, mas naquele dia foi impossível, tamanha era a expectativa. Descemos na rodoviária, entramos pela rua Dr. Deodato Wertheimer, passamos pela igreja do Rosário, pela praça da fonte luminosa e fomos observando algumas lojas, Ducal, Meyer Magazine, até chegarmos a Lojas Ultralar.

O meu pai chamou um vendedor, que ele já conhecia, e solicitou que nos mostrasse o aparelho de tv. Estavam todos colocados em uma prateleira e desligados. O vendedor prontificou-se a ligar um deles. Era uma televisão da marca Telefunken que, nessa época, ainda apresentava imagens em preto e branco. Ligou uma caixinha, que mais tarde eu aprendi que era um estabilizador de voltagem, mexeu em alguns botões, esperou alguns instantes (até que o aparelho aquecesse), regulou a imagem que aparecia entre algumas listras horizontais, depois listras verticais e, em meio a uns chuviscos, foi aparecendo as primeiras cenas, como num passe de mágica. Era um desenho animado do pica-pau, em um episódio clássico em que ele está passeando com o seu “super carro”, quando, por faltar gasolina em seu automóvel, ele resolve roubar do carro do policial Leôncio. Fiquei deslumbrado com aquilo, pois estava acostumado a somente ouvir o som e ali estavam som e imagem. Foi demais!

O meu pai, muito feliz, continuava explicando:

- Meu filho, para sintonizar o aparelho, há a necessidade de uma antena que deve ficar em um lugar bem alto.

Agradeceu a atenção que o vendedor havia nos dado e saímos pela rua em direção à Praça Osvaldo Cruz. Pedi ao meu pai que me mostrasse alguma antena e ele, prontamente, pediu para que eu olhasse na sobreloja. Voltei meus olhos para o alto e vi algo bem diferente, que nunca havia visto antes. Tive certeza que era uma antena!

Antes de irmos embora, passamos na Padaria Americana, comemos um sanduíche de bauru com Guaraná, enquanto esperávamos o horário do ônibus de volta. Lembro-me perfeitamente que na loja de discos Livroeton tocava a música “Dominique”, da cantora Giane (“Dominique, nique, nique, sempre alegre, esperando alguém que possa amar. O seu príncipe encantado, seu eterno namorado...”). Até hoje, quando ouço essa música, recordo-me daquele dia.

Chegando a nossa casa, fui logo descrevendo para a minha mãe tudo o que havia conhecido naquele dia. Mas algo, com certeza, eu caracterizei de forma errada: quando eu olhei para cima a fim de ver a antena de televisão, eu não visualizei o teto do edifício, mas sim sua sala mais alta, que era um salão de cabeleireiro. Pensei que antenas eram uns aparelhos de secar cabelos que estavam próximos à janela daquele salão. Por isso, por algum tempo, eu achei que a antena de televisão fosse parecida com um enorme coador de café ou com uma biruta de aeroporto, em vez de semelhante a uma espinha de peixe. Coisas de criança!

3 comentários:

  1. Sou a sua mais nova seguidora... que riqueza de detalhes... Parabéns ....Ja te admiro como pessoa ... agora como Escritor!!!!!
    Por favor ,vamos agilizar esse livro que com certeza será recordista de vendas!!!! ( pode contar comigo para Vendas rsrsrs)

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  2. Mt legal João!

    Haha, gosto mt dessa história! Sempre rio da parte da antena. Fico imaginando vc contando pra sua irmã e seus primos sobre a "antena"...hehe, certamente coisas de criança msm!

    Memória fotográfica msm!

    Grande abraço,

    Eric

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  3. Que legal! relembrar tbém das lojas, por sinal eram as melhores de Mogi. Parabéns João, a muito boas suas historias!!! Continue... abraço!

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