A
minha mãe estava colocando o último canecão de água na bacia para temperar a
água quente para o meu banho, quando o meu pai chegou e disse que não precisava
ter pressa, pois a Ester não iria à aula naquele dia. Tinha ouvido no rádio que
haveria uma revolução. Era o golpe militar de 1964 que culminou na repressão
militar e acarretou profundas modificações na organização política do país: ditadura
militar, luta armada e os governos militares.
Esses
fatos nós não acompanhamos, pois ouvíamos muito pouco as notícias. A única
comunicação com as ocorrências do mundo chegavam através do rádio que muito
pouco falava a respeito desse período negro de nossa história.
A nossa
rotina consistia em ir à escola, participar das missas, frequentar as aulas de
catecismo, que eram ministradas pelo meu tio Juvenal, e as brincadeiras normais
de crianças daquela idade. Além da cidade de Guararema, conhecíamos somente Mogi
das Cruzes e Jacareí.
Quando
íamos à igreja, eu e o meu primo Antonio Luiz, servíamos a celebração como
coroinhas, isso pelo menos uma vez por semana e preferencialmente as
dominicais.
O
padre João Rosa era como um ente querido da família, pois chegou à paróquia logo
após a sua ordenação na Catedral de São Paulo. Antes, havia ficado quatro anos
em Roma, e logo passou a frequentar as nossas casas. Sempre muito cordial,
carinhoso, gentil, mas também muito exigente. Toda a liturgia era ensaiada;
desde a procissão de entrada, os gestos e atitudes corporais, a forma de
conduzir o evangeliário, como postar as mãos, como se ajoelhar, jeito de se
locomover no altar, tudo cuidadosamente planejado.
O seu
zelo com as nossas vestimentas passavam pelo sapato engraxado, cabelos cortados
e penteados, o comprimento exato da túnica vermelha, a colocação perfeita da
sobrepeliz, na cor branca.
Nas
procissões íamos à frente e escolhia-se alguém do grupo para ser o cruciferário, que é quem sempre
conduz a Cruz Processional, cruz alta formada por uma haste e pelo
crucifixo.
Na Sexta-feira da Paixão, a procissão do Senhor Morto era bem
elaborada, com a presença da figura de Maria, Mãe de Jesus, Maria Madalena,
Verônica, São João apóstolo e outros.
A procissão seguia pelas principais ruas da cidade, em
silêncio, e com cânticos piedosos. Todos acompanhavam em silêncio, como se
fosse um enterro real.
Eu e o Antonio Luiz sempre nos dispúnhamos a tocar as
matracas, instrumento e sinalizador, feito em madeira com um pedaço de ferro
curvilíneo que quando sacudido se produz som.
Após a procissão, iniciava o beijo a imagem do senhor morto e
os coroinhas cuidavam de organizar as filas, muito longas, pois nesse dia
muitas pessoas tinham o hábito de ir à igreja, mesmo os de menor devoção
religiosa.
O Padre João Rosa, sabendo de nossa pouca oportunidade de
sair para outras localidades, certo domingo, após a missa perguntou:
- Quem daqui do grupo já foi à praia?
Apenas o Raul e o Manoel ergueram as mãos.
Ele continuou já de uma forma mais animada:
- Então pessoal, no próximo feriado de 1.o de maio, vamos à
Santos!
Foi uma alegria geral. Todos ficaram eufóricos e comentando
uns com os outros o quanto seria bacana ir à praia. Menos eu e o Antonio Luiz, pois
sentimos um misto de alegria e medo de que os nossos pais não permitissem.
Mas estávamos enganados, pois eles confiavam muito no padre e
permitiram, desde que tomássemos todos os cuidados com a praia, pois seria um
território desconhecido também para eles.
Naquele feriado, bem cedinho, saímos de bicicleta, eu, o
Antonio Luiz e o tio Juvenal, em direção à praça da matriz. Porém, antes, a tia
Odete, que também nunca tinha ido ao litoral, recomendou bastante para que não nos
dispersássemos do grupo e que, principalmente, quando ouvíssemos um barulho
muito alto: a onda! Vindo em direção ao banhista ela poderia engolí-lo. Fomos
com essa informação na cabeça: “todo o cuidado com o tal barulho alto”.
Chegando à praça, a perua Kombi azul do Sr. Carlos Benites já
estava nos esperando. Quando chegaram os demais, foram tomando seus acentos. Após
uma oração do Pai Nosso e Ave-Maria, seguimos viagem.
Na frente, além do motorista, o Sr. Carlos, sentaram-se o
Padre João e o sacristão Armindo. No banco do meio, o Manoel, o Raul e o Luiz
Gonzaga. No banco de trás, eu, o Antonio Luiz e o Carlos Augusto.
Rumamos assim pela estrada de Mogi das Cruzes, Índio Tibiriçá
em Suzano e Via Anchieta no ABC Paulista. Quando aproximamos da Serra do Mar,
todos ficaram maravilhados com aquela paisagem, um misto de neblina, alguns
raios de sol, muitos túneis, e, lá embaixo, aquele mar azul. Quase nem
falávamos para não perder nenhum detalhe. Tudo muito incrível, as curvas, as
florestas, as cachoeiras, tudo novidade.
Quando chegamos à orla, praia José Menino, o Sr. Carlos
estacionou a Kombi próximo a areia, o padre fez as últimas recomendações e,
como já estávamos com shorts embaixo das roupas, as tiramos. E antes de sair em
disparada para a água, ainda pudemos observar aquele cenário magnífico, de um
lado a imensidão do mar, e de outro, o deslumbrante visual dos arranha-céus e
as montanhas da Serra do mar.
Uns provavam da água para ver se realmente estava salgada,
outros rolavam na areia. O Antonio Luiz estava meio preocupado com aquilo tudo
e me chamou de lado e disse:
- Primo, lembre o que a minha mãe falou: “se ouvir um barulho
alto é a onda vindo engolir a gente”.
Mesmo temerosos, embora soubéssemos nadar bem, pois o
ribeirão era a nossa segunda casa, nos benzemos, molhamos os pulsos e a
moleira, e entramos água adentro.
Tudo muito divertido, o grupo sempre juntos, todos achando
aquilo muito diferente, até o padre, nos observando atentamente a alguma
distância, estava de calção de banho. Estávamos um pouco espantados, pois nunca
antes o vimos sem a batina preta.
Ficamos ali mais ou menos uns vinte minutos. Dali a pouco, ouvimos
um barulho ensurdecedor vindo das águas do mar. Eu e o Antonio Luiz nos
entreolhamos e no mesmo momento ele saiu em disparada para a areia, pois na sua
cabeça era o tal som que a sua mãe tanto recomendou. Saiu pulando as ondas,
tropeçando nos colegas, caindo e levantando, com uma fisionomia muito
assustada. Foi quando eu percebi que esse som vinha de uma buzina de um navio
cargueiro que estava saindo do cais, passando pela orla, indo em direção ao
alto mar.
Corri até o meu primo e tentei acalmá-lo, mas já era tarde: a
diarréia e a dor de barriga, pelo medo, chegaram de imediato e a única
alternativa foi retornar ao mar para cuidar de limpar o ocorrido.
Não contamos para ninguém e o resto do dia foi muito
proveitoso: fomos ao cais do porto, atravessamos até a ilha de Guarujá de Ferry
Boat, jogamos futebol na areia fina, e terminamos o passeio em um convento de
freira, onde habitava uma irmã do Padre João, que também era freira, e
pertencia a uma Congregação daquela localidade.
A atuação do Padre João Rosa naquela comunidade foi essencial
em nossa educação e formação, tanto religiosa quanto laical (leigos).
Ficou durante aproximadamente sete anos na Paróquia de Nossa
senhora da Escada e São Benedito, em Guararema, até o ano de 1969. Saiu para assumir
como Pároco em Sabaúna, indo posteriormente trabalhar em Jacareí. Retornou
depois de algum tempo à Diocese de Mogi das Cruzes, desenvolvendo inúmeros
trabalhos pastorais na região.
O retorno, não tenho muito a contar, pois devido ao cansaço,
pelo dia especial, dormimos na saída e
só acordamos na chegada a Guararema.
Toda vez que retorno à cidade de Santos, recordo-me com
carinho e saudade da minha primeira vez que vi o mar.
Parabéns João pela história e pela narrativa. Por alguns momentos viagei com vocês, parecia até que eu estava sentado ao lado do meu pai (Carlos Benitez), indo com vocês para Santos. Meu pai estava acostumado a me levar para várias cidades em suas corridas. Eu fico feliz por ele ter participado da sua história e imortalizado pelas suas palavras, ele e o já saudoso Padre João.
ResponderExcluirAbraços e obrigado...
Eu é que agradeço as sua palavras. Abraços
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