terça-feira, 27 de março de 2012

O Craque na vida e na bola

O meu tio José Moreira viveu a infância, adolescência e juventude em condições normais.
Como membro de uma família simples, mas de ótima formação ética, desfrutava de tudo o que lhe fora oferecido, principalmente a educação que recebeu de seus pais, cercada de muito carinho, mas também muito enérgica, o que norteou toda a sua existência.

Estudou em uma escola rural até o terceiro ano primário, o que era comum aos meninos, pois as meninas nem sempre frequentavam as escolas naquela época. Desde cedo, já despontava como alguém muito inteligente. Tinha interesse muito especial pelos negócios e amava o futebol. Ainda adolescente, trabalhava na roça plantando verduras, legumes e chegou até a desenvolver atividades em carvoaria, junto com o seu irmão, o tio João.

Conheceu na juventude Ana, tia de meu pai, que morava no centro da cidade de Guararema. Logo fizeram planos para se casar. Assim que realizaram este sonho, passaram a morar no prédio que o meu avô havia construído com a finalidade de ser um botequim , mas que a partir de então passou a funcionar como “Armazém de Secos e Molhados São José”, pois o tino empreendedor de tio José mostrava ser essa a melhor atividade no período.

Eles conciliavam as plantações de hortaliças que vendiam no Mercadão de São Paulo com as atividades desse comércio. A tia Ana revezava entre os afazeres da casa e o atendimento ao balcão.

Ali nasceram os primeiros filhos (Laerte, Alaide e Lídia) e, à medida que a família cresceu, ampliou-se a construção com uma casa em anexo, mais ampla, que contava com dois quartos (no porão), além de uma sala grande e uma cozinha. Da sala para o andar do armazém, ligando os dois ambientes, havia uma escada com 13 degraus de alvenaria. O banheiro ou privada, como era costume se chamar, ficava há uns dez metros da entrada da cozinha, mais próximo ao rio para que ali fossem despejados os dejetos.

Como sentiu o potencial de comerciante de sucesso de meu pai Fernando, Tio José percebeu a possibilidade de deixar esse armazém da roça aos seus cuidados. Estabeleceu-se na cidade, mudando-se para lá, mais precisamente para a praça do coreto, onde nasceram mais dois filhos, o Laudenir e a caçula Francisca, conhecida por todos como Kika. O meu pai, assim que ficou noivo de minha mãe, adquiriu o comercio e o manteve até a sua aposentadoria.

As nossas famílias sempre foram muito próximas, pois a partir do casamento de meus tios, o meu pai, antes somente um sobrinho, passou a ser também cunhado deles. Fomos criados e educados todos juntos e os primos eram e sempre serão como irmãos de sangue. Sempre consideramos os tios como nossos segundos pais!


Para a sua época, o meu tio José Moreira era muito avançado e tinha uma visão da vida muito apurada. Foi um homem sempre à frente do seu tempo. Mirou o futuro como ninguém! Estava sempre na vanguarda, pioneiro em mudar-se da roça para a cidade, deixando aquela vidinha tranqüila da pequena horta e da criação de porcos e galinhas para os desafios urbanos. Foi também o primeiro da família a dirigir e a tirar a Carta de Habilitação, sendo que ficou atrás do volante até os seus 85 anos de vida. Os seus carros foram de pequenos veículos como Fuscas, Opalas, Brasílias, caminhonetes, até grandes, como caminhões. Chegou a fazer viagens interestaduais, transportando madeiras e cargas diversas. Era curioso perceber que sempre nos porta-malas dos carros continham pelo menos um jogo de camisas de futebol, bola, bombas, apito, cartão vermelho e amarelo e rede para o gol, além de vários pares de chuteiras e meias.

Em sua casa, assistimos à primeira televisão, uma novidade para poucos privilegiados. Também foi o primeiro a possuir eletrodomésticos, como geladeira, liquidificador e, especialmente, chuveiro elétrico, onde tomávamos banhos quentes e fazíamos a maior festa.

Teve uma vida inteira de uma conduta exemplar. Impossível alguém ter qualquer questionamento em relação a sua postura, seja nos negócios, no âmbito familiar ou, especialmente, no esportivo (quando se pensa em meu tio, é impossível não associá-lo ao futebol). Ainda na juventude, juntamente com os seus irmãos Augusto, João, Juvenal e Bento, com a anuência de meu avô Antonio Moreira, formaram o primeiro campo de futebol daquelas redondezas, fundando o 77 FC.

Logo eles começaram a juntar amigos até organizar um time, chamado então de “quadro”.
As posições dos jogadores em campo também tinham outro nome. No gol ficava o goalkeeper (lê-se golkiper). Havia ainda os alfa direito e esquerdo, os beque de espera e de avanço, o center alfa e o center four. Por um longo período, o meu pai foi o keeper, o tio João, o beque de avanço, o tio Bento, alfa esquerdo, o tio Augusto, ponta-esquerda, o habilidoso tio Juvenal (craque de recursos avançadíssimos para aquela realidade), o meia-esquerda e o sempre seguro tio José, o center alfa. Podiam-se chamar Irmãos Moreira, mas manteve-se sempre como 77 FC.

Esse campo existe até hoje, na beira da estrada, sempre com a grama bem aparada pelos carneiros do Seu Zé Lopinho e é um ponto de referência daquela comunidade. Certamente, não existe na região um campo com tanta longevidade.

A camisa mais tradicional do time era listrada, tricolor (branca, vermelha e preta), mas houve também ao longo se sua história outras variações, como toda azul e também branca, sempre com o distintivo do clube bordado no peito.
O tio Zé Moreira não era de fazer muitos gols, o que se justifica pelo fato de que na época aquele que jogasse na defesa não ultrapassava o meio do campo, mas arriscava algumas cabeçadas nos escanteios e fez as suas marcas.

Suas conversas invariavelmente acabavam em algum “causo” relativo à bola. Era um habilidoso contador de histórias. Seu time de coração era o Palmeiras, embora tivesse ido poucas vezes ao estádio, pois preferia acompanhar pela televisão. Acreditava que jogar profissionalmente era muito fácil, pois achava que não tinha a mesma pegada e rapidez da várzea. Sempre se lembrava dos inúmeros jogos passados, incontáveis lances e até do placar de várias partidas. Falava com desenvoltura dos detalhes de jogos ocorridos há décadas.

Houve um jogo em especial: encontraram-se o EC 77 e o Ipiranga FC no campo do Guararema FC. Lá pelos 20 minutos de partida, atearam fogo no capim gordura que havia em abundância nas cercanias do campo e, à medida que ia aumentando o fogo, uma nuvem de fumaça começou a pairar sobre o gramado, tornando praticamente impossível de enxergar mais de um metro de distância, mas o juiz nada de parar o jogo. O placar encontrava-se naquele momento 1 x 1 e ninguém queria perder esse clássico. Só percebiam a bola quando esbarravam nela. Dizia a lenda que o centroavante da equipe adversária teria carregado a bola em baixo do braço e colocado-a nos fundos da rede. Chegou um momento em que todos pararam e, às lágrimas, ficaram sentados no barranco esperando que a fumaça se dissipasse. Depois de algum tempo, veio uma providencial ventania e, com a visão melhorada, reiniciaram a partida que terminou em
3 x 2 para o 77 FC.

Tio José gostava tanto de jogar bola que a sua vida e o seu dia-a-dia não fazia tanto sentido se não estivesse atuando. Contava um episódio que em certa altura da sua juventude pegou um berne na cabeça, muito comum aos meninos, que infeccionou tanto que nem podia se mexer, pois doía demais. Mesmo assim, foi ao trabalho cortar cana com o tio Augusto. Como ele não podia se esforçar-se demais, ficava somente empilhando as canas cortadas para depois fazer um feixe e poder transportar para perto do engenho. O tio Augusto cortava e atirava uma por vez para ele. Em uma dessa operação, errou a jogada e a cana acertou a cabeça do tio José, bem no calombo do berne que imediatamente furou, jorrando para longe toda a inflamação. Imediatamente, como se não estivesse sentindo nenhuma dor, deu um forte grito de alivio: “Graças a Deus, domingo já vou poder jogar bola”.

Além do amor que tinha em jogar pelo 77 FC, defendeu os times do E.C Bellard , Anjoma FC, Capela D’ Ajuda FC, EC Merendá e Freguesia da Escada FC.
Preparou o primeiro campo no Bairro do Ipiranga, o que ainda era de terra, hoje Estádio Municipal José Luiz Gonçalves da Silva.
Junto com o seu filho Laerte, atuou como técnico no melhor time juvenil do Guararema FC, onde revelou craques como: Xina, Tanaquinha, Marcio, Zé Carniça, Larrúbia, Zé Luiz, Tião, Bananeira, Pedrinho, Eduardão, Alcides, Ivan e outros. Muitos iam ao campo para ver esses meninos, que jogavam na preliminar, e depois deixavam o estádio, pois achavam muito mais prazeroso assisti-los do que a equipe principal.

Nas festinhas de família, quando tinha alguma música tocando, era inevitável a percussão nas colheres, uma de costa para a outra, batendo na perna e na mão, fazendo um barulho peculiar e cantava uma musiquinha: “lero-lero-lero...” que ninguém sabia a letra.
Outra famosa batucadinha era feita com as mãos, entrelaçando os dedos e mexendo as munhecas para cima e para baixo, provocando um som, que só ele conseguia reproduzir.

Aos 77 anos, já totalmente grisalho, mas ainda com boa saúde, aposentou-se do futebol em uma linda festa, em uma partida da família x amigos, com direito a filmagem, reportagem, entrevistas e tudo o mais que tinha direito. Marcou um gol na cobrança de pênalti, aos 38 minutos do segundo tempo. Não faltou a famosa “plantada de bananeira” e a volta olímpica. Ainda participou de algumas partidas esparsas, mostrando as suas habilidades, apesar da sua idade já avançada.

No ano de 2007, aos 87 anos, o nosso ídolo maior foi convocado para compor a defesa da seleção celestial, juntando-se a tantos outros amantes do futebol, como tio João, meu pai Fernando, Beig, Ari, Juqueri, Zé Carniça, Dindim, Nelson Braga, Rubens, Tomateiro, Angelo e outros. Devem estar jogando para alegria de todos os anjos!

Um ser iluminado, um guerreiro que não temia o combate. Gentil, honesto, generoso e engraçado. O seu modelo será lembrado e seguido sempre pelos seus sobrinhos, filhos, netos e bisnetos. Percebe-se em todos os seus descendentes um pouco das várias qualidades suas, a se destacar o carinho uns com os outros, a educação, a retidão e o amor pelas pessoas, qualidades que estão passando para as futuras gerações.
Em 2012, por um decreto municipal, uma estrada, próxima ao sitio dos Moreira, passou a se chamar: ESTRADA MUNICIPAL JOSÉ MOREIRA FRANCO. Justa homenagem!
A vida não basta ser vivida, tem que deixar legados, sonhos e exemplos. Muito obrigado por tudo que o senhor nos deixou.

Saudades, meu querido tio José Moreira!

3 comentários:

  1. Linda história! Escrita também por um craque. Tanto como marido, como filho, como pai, como avô, como amigo... Enfim, uma pessoa iluminada por Deus que tem entre tantas qualidades a de ser honesto, coerente e fiel aos seus princípios. Quem o conhece sabe que é um ser humano muito especial. Te amo muito e tenho muito orgulho de você. Beijos!!!

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  2. Tenho orgulho de ser sua amiga, de ter trabalhado com vc e conhecido esta pessoa maravilhosa que vc é. Adoro seus "causos". beijo grande e obrigada por compartilhar estas historias maravilhosas de sua vida.

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  3. Que delícia parar alguns minutinhos para ler essa história tão bonita e lembrar de um tio tão especial!
    O tio Zé e a tia Ana eram uns queridos!!!Lembro das inúmeras vezes em que eu estava na vó Ruth, sempre brincando com a Natália, e eles chegavam dizendo: "tarde comadre Ruth"... Iam ver o vô Nando, a tia voltava pra cozinha e lá ela e a vó engatavam um papo de comadres,rs,tomavam o famoso cafézinho. O tio sempre chegava com um saco de milho, mandioca, chuchu, banana ou qualquer outro legume, fruta ou hortaliça que estivesse colhendo no momento.
    Bons tempos!
    Nada melhor do que agora com essa historinha linda parar alguns minutos para relembrar de pessoas tão queridas e reavivar a memória com lembranças tão boas!!!
    Adorei papis, como sempre!Sou suspeita né?!
    Continue escrevendo para nosso deleite!
    Te amo muito!Parabéns!

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